O webdocumentário é um novo formato de narrativa de audiovisual na Internet. É uma extensão da linguagem televisiva e cinematográfica com as especificidades da rede. O webdocumentário parte do princípio da participação da audiência através da interatividade. O usuário participa da ação escolhendo como navegar no ambiente podendo ou não, escolher as cenas e sequências a serem navegadas. A linguagem do webdocumentário, seja nas suas etapas de definição e aplicação metodológica, na produção e sua linguagem mantêm o mesmo princípio didático do produto final. Partindo deste princípio, investigaremos alguns webdocumentários produzidos recentemente no Brasil em específico os que foram produzidos colaborativamente, em rede.
Segundo Bakthin (2010), o ser só se constitui enquanto sujeito quando se coloca em relação a outro no processo de interação social. Este processo se dá a partir da linguagem como ambiente de troca ideológica. O documentário permite através do diálogo estabelecer esta troca, constituindo elemento chave do ser/sujeito. Fernão Ramos (2008) salienta que o diálogo é o elemento constituidor do sujeito e aponta que o cinema documentário parte de uma relação dupla constituidora de sujeitos (personagem/documentarista e que, ao estabelecerem na linguagem esse universo formador e constituidor, vão constituir os alicerces para a criação de uma obra artística (o filme documental), para uma relação tripla de interação formadora, através da fruição (personagem/documentarista/espectador).
No webdocumentário estes três sujeitos – personagem, documentarista e espectador – estabelecem trocas intensas e processos de significação, aprendizagem, emoção e descobertas através da interatividade. Percebemos que a linguagem do documentário está presente e não é anulado. Na internet temos ferramentas que proporcionam estes elementos interativos e o mais importante, o trabalho em rede. O documentarista passa a não ser mais o sujeito único quando canais são abertos para produções colaborativas. É possível que o usuário também, ao compartilhar o evento, torne-se documentarista agregando seu ponto de vista através de textos, fotos e vídeos.
Segundo Oliver Crou (2010), pelo neologismo webdocumentário designamos um documentário cuja concepção e realização são feitas para a web e que é difundido pela web. Não se trata de um documentário de formato televisivo ou cinematográfico, de narração linear, que encontra na Internet um enésimo espaço de difusão, mas um tipo de prolongamento do que foram os CD-ROMs ou DVD-ROMs: uma obra que utiliza as tecnologias da web e seus diferentes recursos multimídia. O modo de narração dos webdocumentários é concebido de maneira que o leitor/espectador navegue pela interface de forma totalmente delinearizada. É ele quem conceberá de maneira única seu percurso pelo webdocumentário.
O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação ao longo dos últimos anos conduziram o filme documentário a um cenário de plena mutação. Do ponto de vista da criação, o barateamento dos equipamentos de captação e edição de imagens em movimento tem ajudado um número cada vez maior de autores e realizadores a colocar em prática novos projetos. Em uma outra ponta no processo de produção da cadeia produtiva de produção documental, encontram-se novas formas de distribuição e difusão. Alguns elementos contribuíram para que houvesse novas formas de um trabalho atingir o público, além dos tradicionais espaços o cinema e a televisão: aumento da banda da internet, redes sociais, crescimento do uso de mídias móveis, locativas e o olhar e prática das novas gerações pós TV e cinema. No entanto, como se trata de um cenário em constante evolução, qualquer análise que se faça neste momento captará “uma imagem em movimento dos modelos de criação, produção e difusão do documentário no meio ambiente atual das plataformas digitais” (Observatoire du Documentaire, 2011:2).
Webdoc graffiti: um processo interativo
A capital de São Paulo é mundialmente conhecida como um grande centro urbano e uma dos núcleos do grafite – uma arte oriunda dos Estados Unidos na década de 1970. Fransischelli, como a obra, salienta que o grafite parece pertencer ao cinza, à velocidade e diversidade de uma cidade como São Paulo.
Pode-se dizer que a relação do grafite com a cidade é o grande tema do webdocumentário, mas ele é mais do que isso. Não é possível fazer um retrato único do grafite em uma cidade do tamanho de São Paulo. São muitos os estilos, os grupos e artistas que compõem as imagens que pintam as ruas das cidades e os vídeos do webdocumentário. Nesse sentido, a não-linearidade serve bem para mostrar a diversidade da produção paulistana. Cabe ao usuário, escolher por onde passar e para onde olhar.
A plataforma que o webdocumentário utiliza é bastante simples. Os filmes são separados em episódios temáticos, cada um com quatro vídeos (hospedados no YouTube) e um ensaio. É possível escolhê-los por episódio ou por tags, que incluem o artista e o lugar das obras, ou visualizar o mapeamento de cada obra pela cidade (Fonte: www.webdocgraffiti.com.br).
Ao longo dos vídeos, aparecem links para o mapa, que abre em outra janela. A interação traz a possibilidade de o internauta sugerir um novo marcador com um grafite que não está no mapa.
A comunidade de espectadores
Atualmente com dois episódios, o webdocumentário tem o formato de série, com vídeos lançados mensalmente de forma colaborativa pelos usuários. Embora heterogêneos, identificamos um traço no webdocgraffiti o que possibilita a construção de uma análise deste gênero que pode ser classificado como interativo. Os projetos interativos são aqueles da própria especificidades da web em seu processo narrativo e de criação. Oferecem ao usuário/espectador opções de navegação com a obra. Embora possa escolher os conteúdos, a ordem e o momento de vê-los, o internauta atua em um “ecossistema fechado”, ou seja, “age, mas no interior de um espaço definido pelo autor sem intervir na criação do conteúdo (Observatoire du Documentaire, 2011:19).
O novo papel do usuário/espectador torna-o ativo, ao contrário do cinema e da TV que são atividades passivas, torna-o ativo em todas as etapas de encaminhamento de um projeto. Os projetos participativos preveem especificamente a participação o do usuário na fase da criação, mas sua colaboração pode aparecer também em outros momentos, como os de desenvolvimento, financiamento, montagem, lançamento e colocação da obra no mercado. Embora o novo papel do usuário/espectador possa ser verificado nas obras webdocumentais aqui analisadas, “a extensão e a natureza” de sua relação com cada projeto varia bastante, seja pelo caráter da obra, seja pelas preferências pessoais de cada um.
Segundo a plataforma Pixel Report, “apenas uma porcentagem limitada seria de participantes ativos em projetos, como cro-criadores ou financiadores públicos [crowdfunders], por exemplo, mas os consumidores de alguma maneira fariam parte de um público ativo, escolhendo-se, como e quando se envolver com uma história e usando as redes sociais para avaliar seu projeto, compartilhar pensamentos e assim por diante. Isso poderia, ou deveria, exercer uma influência sobre a criação do conteúdo” (Power to the Pixel, 2011).
Sendo assim, a noção de público em tese, é substituída pela comunidade de espectadores, terminologia que reflete o novo relacionamento que se estabelece entre os criadores e os destinatários da obra. Em outras circunstâncias, isso pode ir além, colocando o antigo público na condição de co-autor da obra o que veremos as seguir ampliando nossa análise junto um modelo de projeto participativo.
Mortos e feridos: um processo participativo
Embora seja uma plataforma baseada em um site colaborativo, o projeto possui um ambiente com conteúdos multimídia publicados pelos usuários onde se estabelece uma narrativa interativa e multimídia presentes no webdocumentário. O projeto interativo da visibilidade a casos de violência ocorridos a partir de junho de 2013, durante manifestações populares. O ambiente é um contraponto ao ambiente seletivo tão comum a alguns ambientes seletivos presentes em nossa mídia. Segundo os realizadores, o projeto propõe um esforço colaborativo para trazer à tona rostos e nomes desconhecidos, agredidos, feridos ou mesmo mortos em decorrência do uso da força pelo Estado.
Os projetos participativos são aqueles que preveem a coprodução e a co-criação do documentário pelo usuário/espectador. A participação pode ocorrer de diversas maneiras, sendo que a mais comum envolve o convite para que o internauta dê sua opinião sobre determinados temas. Mas a participação pode ir mais além, propondo interação entre os próprios personagens da trama, por meio de fóruns, bate-papos (chats, hangouts) e outras soluções tecnológicas.
Assim como o Mortos e feridos nos protestos, alguns produtores têm realizado também obras parcial ou totalmente compostas de conteúdos gerados pelos próprios usuários. Esses projetos funcionam como uma espécie de repositório de vídeos e outros materiais originários de colaboradores externos ao projeto, a partir de uma definição temática prévia. Nesse caso, o proponente do projeto, acaba por abrir mão de parte de sua função de realizador e colaboradores, transferindo-a para o grupo usuários colaboradores. O proponente é, então, uma espécie de curador, que seleciona e cria significados a partir do material recebido, ou de montador/editor, que trabalha com o material previamente gravado por terceiros. Neste tipo de obra, não se estabelece um limite claro entre tornar-se um simples fornecedor de plataforma tecnológica ao atuar como realizador documentarista. Quanto mais o realizador intervém, mais autoral será a obra e, portanto, mais próxima das definições tradicionais que associam o documentário ao estabelecimento de uma visão particular, autoral, de uma realidade. Contraditoriamente, quanto mais autoral se tornar a obra, menos participativa ela será, dado que o usuário/co-criador estará submetido a um crivo por vezes hierárquico ou ressignificante estabelecido pelo proponente do projeto.
Através da linha de tempo do projeto é possível detectar elementos presentes no webdocumentário como fotos, áudio, vídeos e um elemento que extrapola a interatividade analisada no produto anterior, a participação.
Temos agora o conceito de participação, também presente na rede e, sobretudo no que conceitua a web 2.0 – a participação do usuário como produtor de conteúdo.
Resumindo
Em nosso estudo sobre o webdocumentário fizemos um recorte específico no conceito de interatividade e participação. No entanto, os dois modelos interativo e participativo, convergem ao situar o usuário espectador em uma situação de destaque, mais ativa do que nos documentários tradicionais. Aqui no Brasil, mesmo com uma grande quantidade de produções webdocumentais, não temos muita literatura sobre o tema. Buscamos referências no Centre National du Cinema et de L’Image Animée – uma organização da administração pública, criada como uma entidade separada e financeiramente independente. O centro está sob a autoridade do Ministério da Cultura em Paris – França – algumas respostas para estes modelos. O CNC enfatiza que esses projetos, sejam quais forem suas particularidades, têm em comum a proposta de uma nova forma de relação com o espectador, que se encontra no centro da narração, em imersão. Ele é convidado a fazer seu próprio percurso narrativo, a comentar, trocar, participar e contribuir (CNC, 2009:6).
Dois aspectos transversais, que podem estar presentes tanto nos projetos participativos como nos interativos, também devem ser considerados: a questão da não-linearidade do discurso narrativo, muito presente nos ambientes hipermidiáticos e o emprego em novas formas de expressão e o uso do vídeo sobretudo, após o barateamento e um maior acesso aos equipamentos de captação de imagens em movimento. Por exemplo, hoje é possível através da maioria dos smartphones, captar imagens em movimento e compartilhá-las na rede ao mesmo tempo, aliás, em tempo real.
Neste sentido, salientamos o papel do documentarista social em registrar os fatos de seu tempo histórico alocado em seu espaço. Temos na internet, sobretudo na web 2.0, elementos para este processo. As tecnologias de informação e comunicação estão em constante mutação e cada vez mais amigáveis para a produção, colaboração e compartilhamento de conteúdo. É um ambiente onde não é necessária concessões para seu uso. É um espaço que depende do usuário para justificar a sua existência. Acreditamos ser um caminho sem volta que não anula os gêneros audiovisuais tanto do cinema e da TV. Além de usarem as suas linguagens e técnicas, as modernizam, agregam valor e ampliam ainda mais o ambiente de diálogo. Nos proporcionam um contraponto às plataformas oficiais existentes.
Referências
BAKTHIN, Mikhail / Volochinov. Marxismo e Filosofia da Linguagem – São Paulo: Hucitec, 2010;
BURCH, Noel. Práxis do cinema, São Paulo, Perspectiva (2008);
CENTRE NATIONAL DU CINEMA ET DE L’IMAGE ANIMÉE (CNC), França (2009) – “Aide aux projects pour les nouveaux médias, le cinema et la telévision: 2007-2009 – Project retenus”
CROU, Oliver. Qu’est-ce que le webdocumentaire?, WEBDOCU.fr, 2010;
OBSERVATOIRE DU DOCUMENTAIRE – “Le documentaire et les plateformes numériques: Un écosysteme en transformation”, Canadá, 2011;
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal o que é documentário? São Paulo, SP, Editora SENAC (2008);
GAUDREAULT, André e JOST, François. A narrativa cinematográfica, Brasília, UNB (2009);
GAUTHIER, Guy. O documentário, um outro cinema, Campinas, SP, Papirus (2011)
MURCH, Walter. Num piscar de olhos: a edição de filmes sob a ótica de um mestre, Rio de Janeiro, RJ, Zahar (2004)
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário, 4a edição, Campinas, SP, Papirus (2009)
POWER TO THE PIXEL LTD. “The Think Tank Report” Londres, 2011
Webdocumentários:
AT HOME, produzido pela National Film Board, Canadá – disponível em http://athome.nfb.ca/#/athome
Bear, produzido pela National Film Board, Canadá – disponível em http://bear71.nfb.ca/bear71/http://bear71.nfb.ca/bear71/
MORTOS E FERIDOS EM PROTESTOS, produzido pelo Centro de Mídia Independente, RJ disponível em http://mortoseferidosnosprotestos.tk/http://mortoseferidosnosprotestos.tk/
WEBDOC GRAFITTI, de Giovanni Fransischelli disponível em http://www.webdocgraffiti.com.br/
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Richardson Nicola Pontone e Cláudio Márcio Magalhães, são respectivamente mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local e professor da Escola Livre de Cinema, e doutor em Educação, mestre em Comunicação Social, professor e orientador do mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local