Romeu Tuma Junior, secretário nacional de Justiça, está vendo como é ser alvo das forças conjuntas da polícia e da imprensa. Sofrendo o que sofrem os acusados no caso Colina do Sol e na caça às bruxas em Catanduva.
As acusações até agora são de que ele tem amigos chineses (que foi também um ‘indício’ no notório caso da Escola Base) e que ele pechinchou na compra de um telefone celular e um videogame. Notamos, fora do afã da imprensa, que há uma enorme distância entre um telefone celular, um videogame e o contrabando de atacado. Ninguém notou ainda que é um bom sinal que o secretário tenha pechinchado na compra do videogame do filho: funcionário que não precisasse economizar um salário público seria, sim, sinal de corrupção.
Tuma Júnior tem, é claro, umas vantagens. Ele tem longa experiência com a mídia, tem relacionamentos. O programa de José Luiz Datena, na TV Band, cede-lhe tempo e ele sabe aproveitá-lo. Não foi jogado desarmado e sem treinamento na arena da opinião pública para enfrentar os leões. Quando a imagem dele é colocada na televisão, a voz dele é ouvida junto. O tratamento para gente comum é que a cara é colocada a tapa, mas o som que acompanha é a voz de outro, enumerando acusações. E ele tem trinta dias de férias, recebendo seu salário, para se defender. É bastante diferente de responder detrás das grades da cadeia pública.
‘Documentos arquivados’
Mas muito é igual. Tuma Junior deu uma entrevista para a rádio CBN, disponível como podcast aqui, em que ele fala disso. Sobre as gravações, ele diz, às 10h20: ‘Você pinçar frases de um contexto é muito complicado, é um prejulgamento.’ Assim sofreram os pilotos do Legacy. Com a transcrição (melhor dito, a tradução malfeita da transcrição) de duas horas de diálogos, a imprensa catou uma ou outra frase irrelevante que usou para ‘provar’ as teorias que já tinham tecidas.
No caso Colina do Sol, os grampos foram prorrogados para inconstitucionais dez meses na tentativa de encontrar alguma frase que comprovasse crime nas conversas dos acusados Fritz Louderback e Barbara Anner, inclusive com seus advogados. A promotora descobriu que eu e Cristiano Fedrigo estávamos buscando apoio político em Brasília e mandou os documentos falsos da equipe do delegado Juliano para lá. Descobriu que haveria uma manifestação pública de supostas vítimas em frente ao Fórum e mandou o Conselho Tutelar para amordaçar os jovens. Os métodos antigos, da antiga Dops: a promotora nasceu quarenta anos depois do seu tempo.
Às 14:40, Tuma reclama de ‘quem publica documentos arquivados’. Tinha sido alvo de uma investigação que foi arquivada por nada encontrar contra ele. Parece que houve um celular que foi pedido por alguém que desistiu da compra, um videogame que acabou sendo comprado nos EUA e trazido com isenção aduaneira com nota fiscal e um flagrante que não foi relaxado. E se Tuma está encobrindo um amigo que é o ‘grande chefe da máfia’, tanto a máfia quanto o protetor são muito ineficazes: o chinês continua preso desde o ano passado.
Crime acontece porque há receptor
O que importa para a imprensa não é se as acusações têm ou não fundamento, mas que são acusações e foram feitas. Que acusações foram consideradas improcedentes é desinteressante. Afinal, ninguém assiste televisão para ouvir uma defesa.
No caso Colina do Sol, Fritz Louderback enfrentou problema semelhante. Uma acusação antiga e frívola foi não somente arquivada, mas selada pela Justiça dos EUA depois que Fritz processou a xerife-assistente responsável. O documento, sem assinatura, apareceu no Brasil, divulgado em violação à lei americana e ao tratado que regula cooperação jurídica. Há regras exatamente para evitar a entrega de documentos apócrifos. Mas ainda assim o documento veio para Brasil. O processo estava com o sigilo decretado e ainda assim o documento foi parar no Zero Hora.
Na entrevista à CBN, pouco depois das 10h20, Tuma diz: ‘Ao fazer um inocente pagar por um crime, você está ameaçando toda a sociedade. Uma injustiça é uma ameaça para todos.’
Ele não está sofrendo um julgamento pela mídia porque é uma figura política e seu pai idem. Está sofrendo isso porque outros sofreram no caso do Bar Bodega, no caso da Escola Base, no caso Colina do Sol, na caça às bruxas de Catanduva, na procura de um culpado (empreitada diferente do que uma procura das causas) no acidente do Gol 1907 e porque muitos outros sofrerem e sofrem em muitos casos menos famosos sem que nada tenha mudado para que não acontecesse de novo.
Acontece porque a mídia brasileira quer espetáculo, adora acusações e incentiva qualquer policial que quer aparecer como mocinho, se ele entregar alguém para preencher o papel de bandido. A conivência da sociedade e da Justiça com este modus operandi permite que isso continue. A imprensa jura que está cobrindo o trabalho da polícia, a polícia declara que está ‘prestando informações para sociedade’, mas é que nem ladrão de Rolex: o crime acontece porque há receptor pronto para aceitar sem perguntas.
As armas da mídia de massa
A imprensa fala que aprendeu muito com o caso da Escola Base. Aprendeu, coisa nenhuma. O caso Colina do Sol e a caça às bruxas de Catanduva são exatamente os mesmos erros de 16 anos atrás, repetidos. A falsidade das acusações nestes casos atuais foi imediatamente óbvia para quem procurou os fatos dos casos, em vez de tão-somente procurar provas das acusações.
Faz poucas semanas Daniel Dantas foi inocentado no caso Kroll. Talvez o leitor nem ouviu, pois, na frase de Elio Gaspari, ‘em casos desse tipo, os cidadãos veem-se acusados ao som de uma orquestra sinfônica e, quando os processos são arquivados pelo Judiciário, ouve-se apenas o choro de um cavaquinho’.
Ninguém é isento, ninguém é seguro. Nem secretário nacional, nem banqueiro, nem os menores de periferia de Catanduva, que estão há mais de um ano na Febem por terem o infortúnio de estar por perto quando alguém estava disposto a soltar uma acusação e um repórter de televisão estava disposto a captá-la.
É uma ameaça para todos. Ontem foi para mim, hoje para os acusados da Colina do Sol e de Catanduva, e amanhã, quem sabe leitor, vai ser seu dia de enfrentar as armas da mídia de massa.
Perigo é o repórter passar por otário
Tuma Junior enuncia um ditado aceito há séculos na Justiça quando diz, às 14h00: ‘Eu prefiro cem vezes colocar um criminoso na rua porque não tenho provas contra ele, do que colocar um inocente na cadeia.’
É um princípio consagrado na Constituição e na jurisprudência. Mas os advogados no caso Colina do Sol, quando seus habeas corpus foram negados, ouviram sempre que ‘deu muita repercussão, doutor’. Em Catanduva, quarenta policiais e vinte promotores estavam lá para as apreensões coreografadas para as equipes de televisão pré-avisadas, mas quando os holofotes foram desligados, um único perito foi designado para examinar o que caiu na rede. Ele morreu e não foi substituído. E por quê? O caso já foi para o ar, o Gaeco já fez seu marketing.
A Justiça? O que é isso e o que tem a ver?
A imprensa segue outra regra. Há pressa de veicular uma acusação o mais rapidamente possível, para evitar a possibilidade de ela ser desmentida – e aí, se perder a história. Uma acusação pode ser uma teia de aranha, mais buraco do que matéria, mas o jornalismo focaliza os fios. E se a defesa é de aço, com uma única fresta, é esta fresta que a reportagem mira. Acusar um inocente é um dos perigos da profissão – um perigo aceitável, pois é somente o inocente que sofre – nos outros, é refresco. Mas se deixar de acusar alguém, que pode ser culpado – aí, o perigo é o repórter passar por otário ou o concorrente passar à frente. Aí não dá: fica melhor o inocente receber o rótulo de que corrompeu pequenos do que corrompeu os grandes.
Chegarão a ver o sol nascer quadrado?
O secretário nacional de Justiça oferece uma esperança, às 14h30: ‘A lei é para todos. Agora, ela tem que ser para todos mesmo, para quem vaze informação, para quem faz denúncia falsa…’
Será? Ser receptor de informações roubadas não é crime, será que vão chegar ao responsável pelo vazamento? A lei vai mesmo valer, ou mais uma vez será dado o recado que o ‘sigilo de Justiça’ é uma ficção que maquia a mordaça da defesa, para que no Tribunal da Imprensa somente a acusação tenha voz?
Será? Será que as mães que fizeram as falsas denúncias em Catanduva vão sentar um dia no banco dos réus? As que usaram suas ligações com o PCC para tramar o sequestro de William, o sobrinho do borracheiro, vão responder pelo crime verdadeiro, tanto quanto ele respondeu pelo fictício?
Será que os devedores e desafetos de Fritz Louderback, que fizeram as acusações falsas à promotora que metodicamente denunciava quem ousava falar a favor dos acusados, o delegado Juliano Brasil Ferreira e sua equipe que forjaram evidências, coagiram menores para que fizessem acusações, que juraram mentiras, vão passar tanto tempo na cadeia quanto os que falsamente acusaram?
Ou será que todos estes vão chegar a ver o sol nascer quadrado, somente na manhã do dia de São Nunca?
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Formado em Filosofia pela Universidade de Yale e consultor empresarial