Cintia Gomes é jornalista, cofundadora, editora de comunicação institucional e correspondente do Jardim Ângela na Agência Mural de Jornalismo das Periferias. É também uma das cofundadoras do coletivo “Nós, mulheres da periferia”. Já trabalhou no setor de comunicação do Instituto Paulo Freire, foi repórter da Revista Ocas, revisora e diagramadora do livro “Um Batuque Memorável no Samba Paulistano” e produziu o documentário “Três Esquinas: A rua é um palco”. Trabalhou também em assessoria de imprensa nas áreas de cultura, educação e terceiro setor.
Na entrevista, concedida por e-mail ao jornalista Pedro Varoni, Cintia fala do impacto da Covid-19 nas periferias paulistanas e a necessidade de informações confiáveis para o dia a dia da população.
A Agência Mural tem cerca de 80 profissionais — entre repórteres, designers e fotógrafos — cobrindo regiões das periferias de São Paulo. Como foi montada essa rede e quais são os seus objetivos principais?
O projeto surgiu durante oficinas de jornalismo cidadão que aconteceram em junho, agosto e em outubro de 2010, durante quatro fins de semana, na sede da Folha de S.Paulo. As aulas tinham início com leitura e análise dos jornais, levantamento de questões sobre como as comunidades estavam sendo retratadas, por exemplo, na cobertura de uma ocupação da comunidade de Paraisópolis. E, por meio de um perfil no WordPress, foi criada a “Agência da Periferia”, um “projeto multimídia de Jornalismo Cidadão”, o “Mural Brasil”.
As oficinas formaram três turmas de jornalistas cidadãos e, desse total de participantes, 20 decidiram escrever regular e voluntariamente para o blog Mural. Em 24 de novembro de 2010, o blog foi transferido para ser hospedado na Folha.com como o primeiro blog de notícias das periferias de São Paulo, coordenado pela jornalista Izabela Moi.
O blog reunia textos produzidos por jornalistas residentes das periferias de São Paulo, em comunidades como Capão Redondo, Jardim Ângela, Itaim Paulista, Pirituba, Jardim Brasília, entre outros, com a intenção de oferecer um olhar novo, uma visão de dentro de uma área que não é contemplada pela grande mídia. Nasceu assim o conceito de “correspondente local”, que os “muralistas” assumem desde o início.
Desde então, periodicamente fomos formando novos muralistas até a formação que temos hoje. Criamos a Agência Mural de Jornalismo das Periferias e sua estrutura — que trabalha à distância desde seu início — segue até hoje. Nosso maior meio de comunicação e troca ocorre online a partir de conversas e reuniões diárias, por e-mail e redes sociais, e um encontro presencial por mês.
Atualmente, nossa rede conta com cerca de 80 correspondentes e está espalhada nas periferias da capital e algumas cidades da Grande São Paulo. Temos uma equipe de redação fixa de 12 pessoas e uma rede de cerca de 70 correspondentes locais, baseados em diferentes comunidades e que se concentram na desigualdade dos impactos socioeconômicos e de saúde.
Quais são as particularidades da cobertura da pandemia da Covid-19 na periferia de São Paulo a partir da experiência da Agência Mural?
Nossa principal fonte são os moradores das periferias da Grande São Paulo. Desde março, temos dedicado nossa cobertura para abordar a Covid-19. Toda a equipe fixa está trabalhando de casa. Nosso fotógrafo sai uma vez por semana, no máximo, sempre seguindo os cuidados e recomendações sanitárias. Já o contato com todos os correspondentes é diário, via WhatsApp, e-mail, grupos no Facebook etc.
Com a pandemia, fizemos uma mudança de 360º na cobertura e nos voltamos para cobrir exclusivamente os impactos sociais, econômicos e sanitários da Covid-19. Mas agora temos mais cuidados, o grande desafio é que todos estejam em segurança e consigam trabalhar baseados em casa, com pouca estrutura (wi-fi, acesso à internet, linhas móveis) e em meio a pouco espaço para trabalhar.
Fizemos também uma “coligação de colaboração” com outras 79 organizações de 14 cidades do Brasil, com o intuito de tentar fazer chegar a informação mais cedo e de forma mais acessível às zonas mais desfavorecidas do país, por meio da hashtag #CoronaNasPeriferias.
Desde a instalação da crise do coronavírus no Brasil, as periferias de São Paulo estão sendo bombardeadas com “fake news” sobre a situação real e a gravidade da Covid-19. Mensagens que minimizam a necessidade de ficar em casa, sobre a situação real dos serviços públicos de saúde e a confusão sobre orientações provocada pelos governos estão desorientando as pessoas sobre como agir. Sabemos que os principais canais desse imenso volume de desinformação circulam nas redes sociais e telefones (geralmente, via WhatsApp) destes moradores.
Criamos neste período o podcast “Em Quarentena”, sobre a cobertura da Covid-19 nas periferias, pensando em sua divulgação principalmente via WhatsApp, canal que possui grande alcance entre essa população, e também porque sabemos que é por ali (pelo WhatsApp) que grande parte da circulação de notícias falsas acontece.
O podcast é diário (segunda a sexta-feira), com duração de 5 a 10 minutos. Ele traz a cobertura sob o ponto de vista das nossas comunidades, combatendo a desinformação. Também surge para divulgar soluções e/ou informações de serviço para que as populações das periferias possam se proteger melhor e melhor lidarem com o impacto da crise socioeconômica e sanitária.
Os episódios são distribuídos gratuitamente por meio de uma lista de transmissão via WhatsApp (o principal canal utilizado no Brasil para a distribuição de notícias/propaganda falsas), no nosso site e no Spotify.
Esperamos combater a desinformação, reduzindo simultaneamente o impacto trágico da Covid-19 nas zonas menos favorecidas da metrópole paulista, as periferias.
Em nosso site conseguimos contribuir divulgando alternativas e iniciativas que buscam minimizar estes impactos. Seguem exemplos:
Produzimos algumas reportagens como a “A boa do delivery nas periferias”, com uma seleção de restaurantes e lanchonetes com opções de entrega sem sair de casa nessa pandemia.
Na área cultural, Jovens de Paraisópolis fazem ações voluntárias e usam a internet para passar pela quarentena.
Outras com iniciativas como Contra o coronavírus, veja 7 iniciativas para doações nas periferias de SP.
E na Grande São Paulo como ações: Em Santo André, moradores usam WhatsApp e vídeos para informar sobre a Covid-19 nas favelas e Em Guarulhos, ação apoia moradores de rua com informações e produtos de higiene.
E para incentivar o isolamento social, todas as sextas-feiras enviamos uma lista de transmissão com indicações de lives e dicas culturais para aproveitar em casa. A prioridades são os artistas das periferias, que neste momento organizam atividades ao público como apresentações de peças de teatro, cinema e saraus.
Apesar de esforços de maior representatividade e pluralidade no jornalismo da grande mídia, você ainda percebe uma distância em relação à realidade das periferias da maior metrópole brasileira? No caso da Covid-19, quais os pontos mais críticos identificados por vocês para o dia a dia dos moradores?
As periferias têm sido destaque nos noticiários de uma forma nunca vista antes, inclusive em telejornais nacionais onde a pauta principal sempre é política. Tudo isso, por diversas questões que já eram presentes na vida de quem mora nessas regiões, mas que com a pandemia se tornaram mais visíveis e urgentes.
Da mesma forma que há desigualdade nos âmbitos social, econômico e de direitos, há também desigualdade na informação. É comum que as manchetes das periferias sejam sobre violência ou superação, o que gera lacunas e estereótipos na cobertura de mídia sobre as periferias. Mas com a cobertura do coronavírus, além de trazer à tona a tragédia e a gravidade da situação, também temos visto boas reportagens sendo realizadas por alguns veículos que mostram que as periferias vão muito além disso.
Principalmente ao contar histórias de como as pessoas estão enfrentando a situação, trazendo informações úteis, serviços, ações, orientações do que fazer neste período, ampliando as fontes de informação e cobrando soluções para as desigualdades no acesso à infraestrutura e serviços públicos. Dificuldades essas que vão desde morar em um cômodo pequeno com famílias inteiras, a precariedade em estudar de casa, as limitações com o acesso à internet etc.
Para além da cobertura realizada diariamente em nosso site, no episódio 40 do “Em Quarentena”, mostramos mais de 100 histórias de moradores (incluindo os médicos, enfermeiros, terapeutas, educadores, entre outros).
Vocês lançaram uma campanha de matchfunding — financiamento coletivo com aporte de parceiros — para financiar a cobertura da Covid-19 na periferia. Qual a finalidade dessa arrecadação?
Até 13 de junho A Agência Mural de Jornalismo das Periferias recebe apoio na campanha “Apoie a Agência Mural de Jornalismo” por meio de financiamento coletivo na plataforma Benfeitoria.
A iniciativa faz parte do fundo colaborativo “Matchfunfundig Enfrente”, destinado a iniciativas de enfrentamento aos efeitos do coronavírus nas periferias. A cada R$ 10 arrecadados pela Mural, o Fundo Enfrente o transforma em R$ 30, até alcançar a meta de 30 mil reais. A campanha tem a duração de 30 dias.
O recurso será usado para continuar remunerando a rede de correspondentes locais da Mural, que conta com cerca de 80 jornalistas, fotojornalistas e designers espalhados pelas periferias da região metropolitana de São Paulo. Eles estão acompanhando, minuto a minuto, todos os acontecimentos relacionados à Covid-19 nas regiões mais vulneráveis das cidades.
Os interessados em apoiar financeiramente o jornalismo feito pela e para as periferias na Grande São Paulo podem doar por meio do site benfeitoria.com/agenciamural.
Pessoas físicas podem contribuir a partir de R$ 10. Como recompensa, os apoiadores receberão uma newsletter mensal com conteúdo exclusivo sobre os bastidores da Mural.
Já as empresas podem colaborar a partir de R$ 1.000 e terão como recompensa a marca da instituição incluída no site da Agência Mural como apoiador durante um mês.
O que a experiência da Agência Mural ensina para a prática do jornalismo, principalmente considerando questões como racismo estrutural, equidade racial e outros temas que fazem parte da nossa realidade histórica e social?
A maneira que está sendo realizada a cobertura sobre as periferias pela imprensa, no geral, é um passo para que outros assuntos que não apenas a violência tenham destaque. Que seja uma caminho para mudar a cobertura daqui em diante, que não voltemos atrás após a pandemia e que estas sejam pautas apenas abordadas pelas mídias independentes como a Agência Mural, Alma Preta, Periferia em Movimento, Desenrola e não em Enrola, Nós, Mulheres da Periferia, entre outras.
A pauta sobre a diversidade está mais presente do que nunca e temos percebido o quanto ela é necessária. Na Mural, já nascemos a partir de uma diversidade geográfica, abarcando diferentes periferias localizadas na região metropolitana. Para além da questão territorial, essa diversidade também vai para a questão de gênero e raça — 55% mulheres e 55% de pardos e negros.
Recentemente, Vagner de Alencar, diretor de jornalismo da Mural, escreveu o artigo “Combater o racismo também passa por ter mais jornalistas negros nas redações”, publicado no blog Mural. Entre outros aspectos, ele destaca que “Nossa redação é diversa porque as periferias são diversas. As histórias são plurais. Essa diversidade, que também é territorial em sua função de trazer as periferias para o centro da discussão, fugindo dos estereótipos, permite que esses profissionais sejam intitulados não como repórteres de minorias, mas capazes de abordar qualquer assunto para além da negritude.”
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Pedro Varoni é jornalista e autor de A voz que Canta na Voz que Fala- Poética e Política na Trajetória de Gilberto Gil, pela editora Ateliê (2015).