O autor da denúncia por trás dos Panama Papers quebrou o silêncio no dia seis de maio para explicar em detalhe como as injustiças dos paraísos fiscais o levaram a fazer o maior vazamento da história. A fonte, cuja identidade e gênero continuam desconhecidos, negou ser um espião. “A título de registro, não trabalho para governo algum ou para qualquer agência de inteligência, diretamente ou por empreitada, e nunca o fiz. Minha opinião é estritamente minha.”
O denunciante disse que o vazamento de 11,5 milhões de documentos do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca desencadeou um “novo e animador debate global” graças à publicação de matérias, em abril, por um consórcio internacional de jornais, inclusive o Guardian. “Empresas de fachada estão frequentemente associadas ao crime de evasão de impostos. Mas os Panama Papers demonstram, sem qualquer sombra de dúvida, que embora as empresas de fachada não sejam ilegais, por definição elas são utilizadas para realizar uma ampla gama de crimes sérios”, escreveu a fonte. “A desigualdade de renda é uma das questões fundamentais da nossa época. A narrativa jornalística predominante teve como foco, até agora, o escândalo daquilo que é permitido e legal neste sistema. O que é permitido é, na verdade, escandaloso e deve ser mudado.”
Num texto que representa um manifesto de 1.800 palavras, apenas alguns dias antes da reunião de cúpula anticorrupção que o primeiro-ministro David Cameron convocou para Londres, a fonte discriminou os conservadores, dizendo que eles foram “descarados ao esconderem suas próprias práticas envolvendo empresas no exterior”. No mês passado, Cameron foi obrigado a divulgar que detinha ações no Blairmore Holdings inc., fundo de investimentos de seu pai, no Panamá. Mais de 40 países deverão comparecer à reunião marcada para esta semana (12/05).
No ano passado, a fonte por trás dos Panama Papers entrou em contato com Bastian Obermayer, um jornalista investigativo do jornal alemão Süddeutsche Zeitung. Usou o nome John Doe e enviou a mensagem: “Algum interesse em informações confidenciais?” A fonte deu ao Süddeutsche Zeitung documentos vazados do banco de dados da empresa Mossack Fonseca em parcelas e em tempo real. Os papéis incluíam detalhes dos donos beneficiários de empresas no exterior, em paraísos fiscais, cópias de passaportes e e-mails. O jornal compartilhou o material com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos – ICIJ (International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ)), em Washington. Numa das maiores colaborações na história do jornalismo, o ICIJ deu acesso às informações a 100 organizações jornalísticas, em 83 países, que passaram um ano investigando-as.
Outros denunciantes foram punidos
A fonte disse que decidiu agir depois de ter compreendido a “extensão das injustiças” que os documentos descreviam. A empresa Mossack Fonseca nega que haja desonestidade e diz que suas operações no Panamá e em outros lugares são “irrepreensíveis”.
Desde a publicação dos documentos, no mês passado, governos e agências de segurança vêm procurando acesso aos arquivos. O ICIJ recusou-se, “corretamente” a ajudar, disse a fonte, mas acrescentou: “Eu, no entanto, estaria disposto a cooperar com a aplicação da lei, na medida em que tenho capacidade para fazê-lo.” De maneira intrigante, a fonte disse que, de início, os documentos foram oferecidos a “vários veículos jornalísticos importantes”. Editores avaliaram os Panama Papers, mas, no fim, “optaram por não os cobrir”. Não ficou claro quais foram as organizações jornalísticas que recusaram o material. O denunciante anônimo também fez uma abordagem ao WikiLeaks – e também sem sucesso. “Até o WikiLeaks não respondeu à sua linha de informação”, queixou-se a fonte, acrescentando: “A mídia falhou.”
A fonte criticou duramente a profissão legal, que ajudou a instalar dezenas de milhares de empresas de fachada coordenadas pela Mossack Fonseca. Mais da metade das empresas que o escritório de advocacia tinha no exterior tinham sede nas Ilhas Virgens britânicas, um paraíso fiscal administrado pelo Reino Unido. “A Mossack Fonseca não trabalhava num vácuo”, denuncia o texto da fonte. “Apesar das multas, recorrentes, e das violações de regulamento documentadas, ela contava com aliados e clientes de empresas de advocacia importantes virtualmente em todas as nações.”
A fonte também criticou os governos, em espacial o tratamento duro que dão aos denunciantes. Aparentemente, a fonte se inspirou, pelo menos parcialmente, no exemplo de Edward Snowden, que em 2013 revelou como os Estados Unidos e o Reino Unido habitualmente monitoravam as comunicações de seus próprios cidadãos. O governo Obama acusou Snowden de espionagem e ele ficou “encalhado em Moscou”. “Pelas revelações que fez sobre a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês), ele merece uma recepção de herói e um prêmio considerável, e não o desterro”, disse a fonte. A fonte ainda destacou que outros denunciantes que enfrentaram punições por seus atos incluem Antoine Deltour. Deltour está sendo julgado por ter revelado como o Luxemburgo autorizava, secretamente, a evasão fiscal maciça, através das fronteiras, por empresas multinacionais.
“Próxima revolução será digitalizada”
A fonte apoiou as iniciativas de Cameron no sentido de apresentar registros públicos de empresas no exterior que mostrariam os donos beneficiários dessas empresas. A Grã-Bretanha deve adotar o registro público para empresas britânicas no mês que vem. Porém, até agora o primeiro-ministro não conseguiu persuadir os territórios britânicos no exterior a seguir o exemplo. Ofereceram compartilhar informação, mas apenas com agências responsáveis pela aplicação da lei e apenas se isso for exigido.
Apesar de alguns passos positivos, o governo britânico precisava fazer mais, segundo a fonte: “O Reino Unido ainda desempenha um papel crucial para pôr fim ao sigilo financeiro em várias ilhas [territórios] que são, sem dúvida alguma, a pedra angular da corrupção institucional no mundo.”
De uma maneira geral, o denunciante ficou decepcionado com a reação oficial ao vazamento. Na Nova Zelândia, o primeiro-ministro John Key adotou um “curioso silêncio” em relação ao papel de seu país de permitir “fraudes financeiras” nas Ilhas Cook. Nos Estados Unidos, a evasão fiscal não foi determinada, segundo a fonte, pois os políticos dependiam dos super-ricos para o financiamento de suas campanhas.
A fonte conclui o documento de maneira otimista. Numa época de “armazenamento digital barato e ilimitado” e conexões da internet que transcendem as fronteiras nacionais, “a próxima revolução será digitalizada”. “Ou talvez já tenha começado”, disse a fonte.
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Luke Harding é correspondente do Guardian no exterior; a matéria teve a colaboração do Süddeutsche Zeitung