Em época de disrupção no jornalismo, mudanças na sua cadeia de produção, derretimento de publicações mundo afora e incerteza sobre o futuro da profissão, eu tenho o prazer de dizer que há esperança. A semana passada viu surgir uma jornalista de faro apurado e inegável capacidade competitiva. Olhe que história boa.
Seu nome é Hilde Kate Lysiak. Ela tem nove anos e mora em Selinsgrove, uma pequena cidade de cinco mil habitantes na Pensilvânia, no Leste dos Estados Unidos. Hilde foi notícia em jornais pelo mundo afora e personagem polêmica nas redes sociais, em especial no Canadá, Nova Zelândia, Estados Unidos, Hong Kong e Austrália, conforme o interesse por ela registrado no Google Trends.
Não por acaso, seu pai é jornalista, além de escritor e dramaturgo, Matthew Lysiak, colaborador do New York Daily News e da revista Newsweek. Um de seus livros, “Breakthrough”, trata do cientista adolescente Thomas Andraka com um subtítulo revelador: “Como um adolescente inovador está mudando o mundo”.
O próximo livro talvez retrate o fenômeno doméstico e lhe cairia muito bem um título do tipo: “Como uma garotinha de nove anos faz renascer o jornalismo”.
Hilde tinha sete anos quando começou a fazer um jornalzinho caseiro com giz de cera, informa a BBC. Aos oito já estava na internet com o site que acabou famoso com o nome de sua rua, Orange Street News, implantado em WordPress, uma plataforma que facilita ao máximo a criação de um site na web. As edições começaram aleatórias, atualizadas com intervalos semanais ou mensais, e agora são diárias – há dias com mais de uma atualização.
Hilde explicou a que veio na segunda edição do site: “Eu acredito que as pessoas precisam saber o que está acontecendo nas redondezas da rua Orange”.
A popularidade instantânea veio na cola da informação de uma fonte segundo a qual um crime havia acontecido perto da casa de Hilde. Ela se bandeou para lá, entrevistou os vizinhos, conversou sem muito sucesso com a polícia, gravou um vídeo e publicou no site em 2 de abril: “Exclusivo: assassinato na rua Nove”. Os veículos “profissionais” chegaram na cena do crime bem depois.
Foi uma comoção, e não só em Selinsgrove. Nas redes, a estupefação se traduzia nos seguintes questionamentos e afirmações: pode uma menina de nove anos tratar de um crime? Por que seu pai não a coloca no seu devido lugar? Hilde deveria era estar brincando de boneca.
Com uma disposição incomparável, ela se pôs diante da câmera da irmã de 12 anos, Isabel, e leu e respondeu a várias das críticas recebidas via internet. E explicou mais, em artigo ao jornal The Guardian: “Minha história se tornou viral nesta semana, quando eu respondi a habitantes da minha cidade que ficaram chateados porque eu estava relatando um crime grave, ao invés de fazer – bem, tudo aquilo que eles pensam que meninas de nove anos de idade deveriam estar fazendo. (…) Com meu trabalho, eu fui capaz de manter o povo de Selinsgrove informado sobre este importante evento horas antes da minha concorrência chegar à cena”.
Curiosidade mundial
E ainda passou uma compostura nos competidores: “Descobri que a polícia pediu às publicações para não publicar a história. Eu posso ter só nove anos, mas eu aprendi que o meu emprego como repórter é obter a verdade para o povo. Eu trabalho para ele, não trabalho para a polícia.”
Ela quer ser levada a sério e acha que as crianças devem saber que, se trabalharem duro no que acreditam, podem fazer coisas incríveis. Traz consigo o que a gente pode chamar de vocação. Denota uma inclinação natural para apurar e contar histórias, componente imprescindível na composição de um bom jornalista.
É evidente que a figura paterna tem responsabilidade no caso. Matthew costuma levar a filha para o trabalho, onde ela provavelmente se inspira. Mas impressiona como Hilde adapta o arsenal do ofício para o meio digital e age com desenvoltura, principalmente nos vídeos. “Sim, eu sou uma menina de nove anos de idade. Mas eu sou uma repórter, em primeiro lugar”.
Como o ofício do jornalismo digital não se resume apenas ao site, sua página no Facebook, na sexta-feira, contava com quase 16 mil seguidores – e crescia rapidamente. Eram pouco mais de 11 mil na quinta-feira, número pequeno no Facebook, mas o dobro da população de sua cidade.
Hilde ainda não domina as melhores práticas do ofício – a rusticidade do site, o pouco cuidado com as boas práticas nas postagens no Facebook, por exemplo, mostram isso. Mas o fato é que o engatinhar da forma fica para trás quando se vê as centenas de mensagens de várias partes do mundo na sua página. Recebeu convites para entrevistas do Canadá e da Itália, teve congratulações da França e da Austrália. Escreveu no Guardian, saiu na BBC. Ela ficou mais importante do que a notícia que deu.
Se continuará uma boa jornalista quando crescer, ninguém sabe. No entanto, a pequena Hilde chamou atenção para uma profissão que, a cada dia que passa, perde um pouco do seu glamour. Ela virou exemplo de otimismo para um jornalismo que vira e mexe se lamuria em relação à superficialidade das redes sociais, condena a profusão de informações, reclama da falta de recursos para investigar, não se conforma de ter perdido o papel de ator principal da notícia e se coloca como vítima dos tempos.