Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A brasilidade de Daniela

Para entender a obra “Canibália – Ritmos do Brasil” (Som Livre), da cantora Daniela Mercury que é a representação ao vivo em CD e DVD do álbum “Canibália” (Sony), lançado em 2009, é preciso remeter a conceitos como o Movimento Antropofágico, A Semana de Arte Moderna, o Tropicalismo e o Samba. Tanto o “Canibália” quanto o “Canibália – Ritmos do Brasil” fazem uma síntese da diversidade artística do Brasil. Este artigo científico é embasado no comentário do jornalista Jon Pareles, do jornal estadunidense The New York Times intitulado “New albums by Daniela Mercury and Gilad Hekselman” (novo disco de Daniela Mercury e Gilad Hekselman), de 12 de setembro de 2011. Outras obras dão suporte a este artigo, como o livro Para entender a Modernidade, de Mary Rute Gomes Esperandio, A trama dos Tambores, de Goli Guerreiro, Tem mais samba, de Tárik de Souza e Tropicália, uma revolução na cultura brasileira, de Carlos Basualdo e o artigo “Subjetividade Antropofágica”, de Suley Rolnik.

Define-se Movimento Antropofágico como uma manifestação artística brasileira, criado e teorizado pelo escritor paulista Oswald de Andrade. O manifesto foi criado a partir de uma pintura de Tarsila do Amaral, batizada de “Abaporu”, e nele um homem é plantado na terra o que dá uma conotação do homem nativo, selvagem, antropófago. De acordo com Mary Esperandio, Oswald de Andrade utilizou o conceito de antropofagiainspirado na prática canibal dos índios Caetés.

“Oswald de Andrade aproveita a fórmula ‘ético-estética’ de relação com o outro e sua cultura, conforme praticado pelos índios Caetés, e dá um novo sentido à antropofagia enquanto traço da subjetividade brasileira. Antropofagia torna-se então um conceito utilizado metaforicamente por uma das correntes do modernismo brasileiro para caracterizar uma atitude estético-cultural de ‘devoração’ e assimilação dos valores culturais estrangeiros de forma crítica, valorizando, ao mesmo tempo, os elementos da cultura nacional que foram reprimidos pelo processo de colonização do Brasil” (2007, p.16).

Sambas, ritos indígenas e folclore amazônico

O que se pode perceber é que no projeto Canibália, e nisso inclui também o “Canibália – Ritmos do Brasil”, a cantora buscou digerir todos os criadores e criaturas de um movimento que sustenta a variedade artística brasileira. Um disco que traz a canção “Dona desse lugar” (Paulo Daflin, Daniela Mercury e Marcelo Quintanilha) em louvor aos primeiros habitantes do Brasil. Um projeto complexo que traz a alma de um povo em uma digestão antropofágica e rítmica.

O significado do movimento antropofágico de mastigar, deglutir e digerir pode ser ouvido facilmente nas 14 faixas do disco “Canibália” e nas 22 faixas de “Canibália – Ritmos dos Brasil”. A abertura do DVD da cantora, a faixa MBira (Ramiro Mussoto e Santiago Vasquez) conclui todo este sentimento antropofágico, de diversidade rítmica brasileira. Daí, pode-se definir o projeto Canibália como a “Semana de 22”, defendida por Esperandio como algo produzido em solo nacional e que retrata o mundo.

“Ela é representativa de um afeto intenso que busca vias de expressão por meio da afirmação de uma identidade própria. (…) Quer se buscar novas formas de expressão, que sejam caracterizados pela hibridação resultante da mistura de elementos próprios da realidade brasileira (por exemplo, as cores fortes, as paisagens tropicais, a herança étnica e cultural indígena e africana) com as tendências internacionais. Busca-se instaurar uma forma libertadora de pensamento e relação ao outro” (2007, p.19-20).

Desde a sua explosão no cenário musical brasileiro, no início da década de 90, com o Canto da Cidade, Daniela Mercury sempre buscou na variedade de referências musicais a sua ecleticidade musical. Variedades estas inspiradas neste movimento e sua subjetividade, que não via empecilhos para expor seus pensamentos, o pensamento de um povo. No caso de Daniela Mercury, desde os diversos sambas afro-brasileiros aos ritos indígenas e o folclore amazônico.

“A majestade da rebeldia”

Assim, Canibália e sua subjetividade podem ser resumidos:

“A cultura brasileira nasce sob o signo de uma multiplicidade variável de referências e sua mistura. No entanto, também desde o nascimento, muitas são as estratégias do desejo face à mistura, distintos graus da exposição à alteridade que esta situação intensifica” (ROLNIK, 1998, p.3).

O Tropicalismo surgiu entre 1967 e 1968, período em que a ditadura militar começava a se consolidar no Brasil. Caracterizado por correntes populares de vanguarda e da cultura pop nacional e internacional. Um movimento que teve uma maior visibilidade na música, mas atingiu diversidades artísticas como as artes plásticas de Hélio Oiticica, o Cinema Novo de Glauber Rocha e o teatro brasileiro. Assim, pode ser definido o movimento tropicalista.

“Na origem ‘mítica’ do Tropicalismo encontramos fortes referências ao campo das imagens, mas que se atém geralmente à influência do filme Terra em transe, reivindicada por Caetano Veloso e José Carlos Martinez Correa, tanto pela radicalidade estética quanto pela postura iconoclasta de Glauber Rocha. Outra referência mítica passa, nas artes plásticas, por Hélio Oiticica (…) Nas artes plásticas, a proposta de Hélio Oiticica para o penetrável Tropicália (1967), que batizou o movimento, já traz os elementos sensoriais, imagéticos, cinéticos e metacríticos caros ao cinema moderno, destacando-se os procedimentos de linguagem que exigem um novo posicionamento do expectador” (BENTES apud BASUALDO, 2007 ,p.99).

Na música “Trio em Transe” (Daniela Mercury, Marivaldo dos Santos e Gabriel Póvoas), a cantora faz uma celebração ao novo e ao velho cinema brasileiro. No DVD o figurino utilizado pela cantora e pelos bailarinos, além da cenografia, sintetiza todo o manifesto canibal.

“Como película girar junto com a terra, sem futuro, nem passado. Ser presente, primavera todo tempo apaixonado fazer samba lá na tela. Ter você sempre ao meu lado pra mostrar que a vida é bela. Ser a sétima arte no sétimo dia. Ser a majestade da rebeldia recriando o mundo assim como eu queria. Assim como eu queria”(MERCURY, DOS SANTOS E PÓVOAS, 2009).

Uma edição especial de Canibália

Grande parte da ideologia tropicalista é baseada no Movimento Antropofágico da década de 20. Digerir influências estrangeiras e enaltecer a diversidade nacional. O interesse em uma incorporação de um referencial estético erudito e popular.

“É nesse contexto que a antropofagia oswaldiana é usada pelos assim chamados tropicalistas como estratégia de luta, como resistência criativa em pelo menos duas frentes: nos campos da política e da cultura. No campo político a repressão começava tornar-se cada vez mais acirrada. No campo cultural, dominava a estética cultural da bossa nova como critério característico da chamada ‘musica brasileira’” (BENTES apud BASUALDO, 2007, p. 20-21).

No samba-reggae “Swing da Cor” (Luciano Gomes), primeiro sucesso da cantora em carreira solo, Daniela Mercury cita um trecho da obra Tropicália, de Caetano Veloso “Viva a bossa, Viva a palhoça! Viva a Bahia, Viva a alegria!” como forma de enaltecer este movimento em uma música popular.

Esta diversidade rítmica e estética, própria dos movimentos Antropofágico e Tropicália, fez com que o crítico musical Jon Pareles, do jornal The New York Times, definisse o trabalho da cantora como “inteligente, vibrante, contemporâneo e plural assim com a cultura brasileira” (2011). Em outro momento ele ainda afirma:

“Daniela Mercury ultrapassa os conceitos que foram exaltados durante a sua carreira (…) com um pop contemporâneo, abraçando a pluralidade étnica e cultural do Brasil (particularmente a cultura afro-brasileira, embora Daniela Mercury seja branca), lembrando o passado e transformando-o” (The New York Times, 2011).

O comentário do colunista aparece durante o lançamento de uma edição especial de Canibália, com o disco de 2009 e do DVD “Canibália – Ritmos do Brasil”. Neste período, outubro de 2011, Daniela Mercury apresenta na América do Norte o concerto Canibália, antes apresentado na América Latina e na Europa.

Reggae e candomblé

O samba, cantado nos dois álbuns de Daniela Mercury, tem várias vertentes. O ritmo originado na Bahia e popularizado no Rio de Janeiro tem influência africana é apresentado pela cantora sob a forma de Samba Reggae (O Canto da Cidade – Daniela Mercury e Toti Gira, Swing da Cor – Luciano Gomes, O Reggae e o Mar – Daniela Mercury e Rey Zulu, Batuque – Rey Zulu e Genivaldo Evangelista, Música de Rua – Daniela Mercury e Pierre Onassis, Ilê Perola Negra – Miltão, Renê Veneno e Guiguio, O mais belo dos Belos – Valter Farias, Guiguio e Adailton Poesia e Por Amor ao Ilê – Guiguio), Samba-exaltação (“Na Baixa do Sapateiro” – Ary Barroso, “O Samba da minha terra”- Dorival Caymmi, “Samba da Benção” – Vinícius de Moraes e Baden Powell, “Eu sou preto” – J. Velloso e Mariene de Castro, “Sorriso Negro” – Adilson Barbado Jair Carvalho e Jorge Portela, “Quero ver o mundo sambar” – Daniela Mercury e “Vide Gal” – Carlinhos Brown). Percebe-se uma ecleticidade de gêneros que a cantora utiliza para representar diversidade rítmica.

“O samba tem origem afro-baiana de tempero carioca. Isso embora o ramal propriamente baiano (chula, samba de roda, samba-duro e outros sotaques) tenha continuado a desenvolver-se em leito próprio até o samba-reggae e o pagode da axé-music” (SOUZA, 2003, p.13).

A antropóloga Goli Guerreiro no livro A Trama dos Tambores traz uma definição de Samba reggae defendida pelo músico e pesquisador Bira Reis:

“Para Bira Reis que foi saxofonista do Olodum durante sete anos, o mestre Neguinho do Samba utilizou a célula básica do reggae (que determina um contratempo), a clave cubana e uma outra clave invertida, que é a do candomblé de Angola. Seguindo este raciocínio, a célula rítmica do samba reggae é uma combinação de células já existentes no candomblé, nos sambas urbanos, na salsa e no reggae, então reanrrajadas” (2007).

E por falar em reggae e candomblé, Daniela Mercury traz os dois estilos musicais nas canções “Sol do sul” (Daniela Mercury e Gabriel Póvoas), “Iluminado” (Vander Lee) e “Oyá por nós” (Daniela Mercury e Margareth Menezes) “Maimbê Dandá” (Carlinhos Brown), respectivamente.

 

O samba-exaltação caracterizado também por Daniela Mercury nos álbuns Canibália, de compositores como Dorival Caymmi, Baden Powell, Vinicíus de Morais e Ary Barroso, surge em um momento crucial da política brasileira e é disseminado também pela música erudita. Um popular ao mesmo tempo elitizado.

“Novas adesões como a do refinado baiano Dorival Caymmi, além das harmonias elaboradas por de Custódio Mesquita, o molejo de Pedro Caetano, o figurino tropicalista de Assis Valente, a sobriedade de Synval Silva, o populismo luxuoso de Herivelton Martins e o sotaque interiorano arrastado de Ataulfo Alves conduzem o samba para outros caminhos, já ao sabor da industria musical. A ideologia do Estado-Novo de Getúlio Vargas contamina o cenário, e do malandro convertido (“O Bonde São Januário”, de Ataulfo Alves e Wilson Batista) chega-se ao samba-exaltação cujo carro-chefe “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, torna-se o primeiro hino brasileiro no exterior” (SANTOS, 2003, p. 14).

O samba “O que é que a baiana tem” (Dorival Caymmi), imortalizado na voz de Carmem Miranda, ganha um arranjo misto de samba com música eletrônica. Além disso, Daniela Mercury divide o vocal com a própria Carmem Miranda.

Por fim, a cantora traz em seu disco de estúdio influências estrangeiras característicos dos movimentos Antropofágico e Tropicalista. Um hip hop com a música “This life is beautiful” (Wycleff Jean, Daniela Mercury e Jerry Duplessis) em parceria com a cantor haitiano Wyclef Jean. Ela ainda traz “One Love”, da caboverdiana Sara Tavares e “A vida é um carnaval” (Tais Nader e Victor Daniel) uma versão de La vida és um carnaval, da cantora Célia Cruz. Pareles define “A vida é um carnaval” como brilhante.

“Uma tradução em português do hit de Célia Cruz que mistura samba, merengue, acordes de jazz, piano de polegar africano – um brilhante pan-afro-latino-romp executado despreocupadamente” (The New York Times, 2011).

Pluralidade cultural

Em “Canibália – Ritmos do Brasil”, Daniela Mercury introduz ainda a Toada do Boi Garantido, do Festival Folclórico de Parintins, homenageando os índios amazônicos com “Paixão de Coração” (Demétrius Haidos e Geandro Pantoja) e “Vermelho” (Chico da Silva).

Tanto o disco Canibália quanto o “Canibália – Ritmos do Brasil” reforça a multiculturalidade do Brasil. Daniela Mercury consegue passear por todas as vertentes musicais e artísticas em geral. As pinturas de Caribé e Cândido Portinari e a fotografia de Mario Cravo Neto se misturam com o Balé Folclórico da Bahia, o Afrolata, o balé percussivo do Grupo Didá, as passistas do Grêmio Recreativo de Escola de Samba Unidos da Tijuca e o folclore amazônico do Boi Garantido. A arte brasileira representada de forma subjetiva como é a sua cultura.

O projeto Canibália revoluciona a pluralidade cultural do Brasil sem afastar de forma nenhuma de seu conceito e da criatividade de Daniela Mercury.

Referências

BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália – uma revolução na cultura brasileira (1967 – 1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007.

ESPERANDIO, Mary. Para entender pós-modernidade. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

GUERREIRO, Goli. A Trama dos Tambores – a música afro-pop de Salvador. São Paulo: Editora 34, 2007.

ROLNIK, Suelo. A Subjetividade Antropofágica. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998.

SOUZA, Tarik de. Tem mais Samba – das raízes à eletrônica. São Paulo: Editora 34, 2003.

The New York Timeshttp://www.nytimes.com/2011/09/13/arts/music/new-music-by-daniela-mercury-and-gilad-hekselman.html

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[Fagner Abreu é jornalista, Salvador, BA]