Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A responsabilidade de escrever sobre responsabilidade

Sexta-feira, 4 de abril de 2014. Chego em casa após uma longa tarde longe de qualquer conexão com a internet. Como li esses dias, “lar é o lugar onde o wi-fi conecta rapidamente”. Preciso checar o que aconteceu na rede enquanto me desliguei dela. Sento, então, para ler e-mails. Não são muitos. Um deles é bastante chamativo: “Acabou o abuso!” Leio imediatamente. Como resistir a um título como esse? Era uma newsletter do Instituto Alana.

O instituto, uma organização sem fins lucrativos, vem construindo paulatinamente, desde 2006, uma reputação considerável (e boa) no que diz respeito à defesa e propagação dos direitos das crianças. O trabalho que o Alana desenvolve, com o projeto “Criança e Consumo”, criado naquele ano, promove iniciativas importantes como a Feira de Troca de Brinquedos (voltada para desestimular o consumismo desenfreado de crianças e pais) ou movimentos como a Semana sem Telas (antes, Semana sem TV), na qual adultos e crianças assumem o compromisso de ficar longe de qualquer meio de comunicação com esses elementos vertiginosos – e ainda hoje demonizados. A Semana sem Telas “é uma comemoração anual em que crianças, famílias, escolas e comunidades desligam voluntariamente as telas e ligam a vida”, segundo o site do próprio Alana.

Como mãe de um menino de sete anos e como professora de Comunicação Social, leio avidamente o conteúdo enviado pelo instituto, pois o abuso do título se refere ao que se chama comumente de publicidade infantil. Abaixo de uma imagem em que cifrões voam de uma tela de TV em direção a crianças, alguns depoimentos apoiam e comemoram o fim desse abuso. Ao acessar o site do Alana, lincado na newsletter, me deparo com outro título enfático, acompanhado da mesma imagem: “Publicidade dirigida às crianças deve acabar imediatamente”.

Essa entrada é bastante forte, uma vez que vivemos um momento em que muitos pedem o fim desse tipo de publicidade, considerada nociva por pais que, ao ligarem a TV no Discovery Kids ou Cartoon Network, por exemplo, têm sua sala invadida por sequências de anúncios que levam muitos pequenos a repetir como se fosse um bordão: “Compra pra mim?”

Ainda de acordo com o Alana, a decisão seria do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão da Presidência da República responsável por deliberar e gerir políticas públicas para essas faixas etárias. O órgão publicou no Diário Oficial da União uma resolução (de número 163) na qual “considera abusiva toda publicidade direcionada às crianças”, diz a newsletter do Alana.

Mais abaixo, o texto afirma:

“Com a resolução, a partir de hoje fica proibido o direcionamento à criança de anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchandising, ações em shows e apresentações e nos pontos de venda”.

Ora, a partir do que está dito, a publicidade infantil está proibida. O ímpeto, portanto, é compartilhar o mais rápido possível o texto recebido. Dizer que não é mais permitida a publicidade infantil é uma notícia cujo impacto não se poderia negligenciar. O problema é que a publicidade infantil não está proibida. O problema é que, no mesmo texto, o Alana, que prega responsabilidade, consegue, num único golpe, atacar a qualidade da mensagem jornalística e oferecer um discurso redutor contra a publicidade.

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Divulgar informação correta é dever do profissional

Recebo link de notícia da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) na quarta-feira (9/4) à noite. Ao clicar na notícia, o título é “Resolução recomenda fim da propaganda voltada a crianças no Brasil”. A matéria era factual, mal apurada. Mas isso ainda não é tão grave. Dias depois, também recebi o release do Alana, e foi aí que o problema começou.

De acordo com a EBC, corretamente, o Conanda recomenda o fim da publicidade voltada a crianças em todo e qualquer meio, formato e suporte. Mas, segundo o Alana, acabou o abuso. No texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, dispositivo legal que instituiu o Conanda em 1990, não encontro nenhuma referência à competência do conselho para realizar tal proibição. No excelente manual da Agência de Notícias sobre os Direitos da Infância (Andi) sobre o ECA para a cobertura jornalística da infância e adolescência, também nada. No máximo o Conanda tem papel sobre políticas públicas – e não necessariamente essa medida seria uma política pública.

O fato é: o Alana esquentou a manchete. Simples assim. Fez um trabalho de spin doctor, típico das piores assessorias de imprensa, e atribuiu a uma recomendação a força de imposição legal. A essa altura, em que há alguns anos órgãos como a Anvisa tentam intervir, sem sucesso, sobre a publicidade no Brasil, o Alana já sabe que qualquer regulação legal sobre o tema tem de passar pelo Congresso Nacional – e, possivelmente, será derrotada. Mesmo aprovada, pode cair no Supremo Tribunal Federal (STF) a partir de entendimento sobre o artigo 5o da Carta.

Diante desse cenário, o instituto busca capitalizar sobre qualquer fato contrário à publicidade infantil, como fez estardalhaço com a resolução do Conanda. Só que dessa vez capitalizou fazendo mau jornalismo. Do pior tipo: que engana o leitor vendendo a ele um gato que nem de longe é lebre.

Mas não são apenas os veículos que estão sujeitos ao Código de Ética dos Jornalistas e, bem, a esses princípios éticos vagos e compartilhados pela categoria? Não, segundo o próprio código, que só diferencia a atuação entre as redações e as assessorias no que diz respeito às fontes (artigo 12). Divulgar corretamente a informação é dever de todo profissional (artigo 7), esteja ele em redação ou não.

Ainda que o Alana argumentasse que não está sujeito a esses preceitos éticos, sua reputação como entidade tem sido construída ao longo dos anos em cima da credibilidade. Que pressupõe, entre outras coisas, a correta informação, sim. No livro Os jornais podem desaparecer? o norte-americano Philip Meyer argumenta que um jornal pode perder tudo: dinheiro, circulação, anunciantes. Mas a única e irrecuperável perda é da credibilidade. A lição de Meyer pode se estender a toda e qualquer organização que lide com informação ou que a utilize como meio de disseminação de propostas.

Por isso, quando o Alana usa palavras como “acabou”, “ilegal”, está enganando pais e mães, leitores, apoiadores. A publicidade infantil pode não ser legal; mas não é ilegal, nem passou a ser a partir da resolução do Conanda. O conselho pode pedir o fim da propaganda, mas a propaganda não acabou. A maneira como o instituto escolheu “vender” a pauta, de um lado, o iguala às práticas antiéticas do jornalismo; de outro, é uma maneira desnecessária de chamar atenção para a causa. A instrumentalização do jornalismo para fins que não a informação correta, de interesse público e de qualidade não deve ser feita, aceita passivamente nem incentivada – não importam os fins, mesmo que sejam relativos à infância.

Em tempo: a matéria da EBC e o texto do release do Alana são praticamente os mesmos. No fim da matéria da EBC, há um aviso sobre a origem das informações: Alana. Deveria, na verdade, vir escrito: apenas Alana, já que a matéria é unívoca; só ouve o advogado do Alana, não procura o contraponto. Mal apurada, não explica direito qual a eficácia da resolução nem o papel do Conanda. Como empresa jornalística, a EBC também serviu de assessoria à causa.

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Uma indústria obscura e blindada

Sexta-feira, 4 de abril de 2014. Chego ao trabalho no final da tarde para ministrar a disciplina Linguagem Publicitária. Enquanto me preparo para iniciar a aula, abro meu e-mail e encontro uma mensagem do Instituto Alana. No assunto, uma exclamação: “Acabou o Abuso!” A newsletter fazia referência à resolução aprovada pelo Conanda e divulgada no Diário Oficial da União (16/3), que recomenda a proibição, no Brasil, da publicidade direcionada às crianças.

Entidades do mercado publicitário e de mídia, rapidamente e educadamente, divulgaram uma nota pública, feita em conjunto, na qual se posicionam contra a resolução aprovada pelo Conanda. No total, nove entidades assinaram a nota: Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Nacional de Jornais (ANJ) Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e Central de Outdoor.

Para essas associações, a proposta é ilegítima. Confiam que a autorregulamentação exercida pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) é o melhor – e mais eficiente – caminho para o controle de práticas abusivas na publicidade comercial. Simples assim. Não se abalaram com o abuso e com a irresponsabilidade depositadas na notícia.

Mas eu fiquei abalada. Apesar de considerar a notícia equivocada, pois o Poder Legislativo, exercido pelo Congresso Nacional, é o único foro com legitimidade constitucional para legislar sobre a publicidade comercial. Me abalei pela sutileza com a qual está sendo (des)construído o valor acerca da publicidade. Um “acabou o abuso”, seguido de “publicidade dirigida às crianças deve acabar imediatamente”, faz com que interpretemos que a publicidade é abusiva. E essa ideia se propaga. Com muita força. Uma noção equivocada e leviana acerca da publicidade. Os depoimentos que ilustram o release reforçam isso: “Parabéns Conanda por essa importante vitória (…) crianças e adolescentes ficam demasiadamente expostas (…) movidas financeiramente pela publicidade”. Ou ainda: “Momento de agradecer e renovar as esperanças de vivermos num país melhor para as nossas crianças”.

Muitos pedem o fim da publicidade infantil. Possivelmente, são abordagens como essa que contribuem para isso. Os indivíduos passam a enxergá-la como algo danoso, nocivo, cruel. Mas, é claro! É o que se encontra por aí. Se ignora que a atividade publicitária é legitima e legal, regida por algumas leis, entre elas a Lei Federal n º 4.680/65; pelo Decreto Federal nº 57.690/66, este revogado pelo Decreto Federal 4.563/02. Negligencia-se que existe um Código de Ética entre os Profissionais da Propaganda. Desconhece-se que a atividade publicitária possui um Conselho Executivo de Normas e Padrões com representantes de diferentes áreas de interesse no intuito de coordenar e supervisionar, adivinhem o quê? Sim, a publicidade!

Infelizmente, o que se percebe a partir de colocações infelizes, como as motivadoras desse texto, é um deslocamento do real problema existente quando se coloca a equação criança + consumo. Nessa equação, o foco dos institutos e, consequentemente, dos indivíduos, está na publicidade, quando, na verdade, precisaria estar no produto, este, sim, o principal foco de atenção na relação criança e consumo.

Os institutos propõem a discussão acerca do uso de linguagem infantil, efeitos especiais utilizados nas propagandas – ignorando a perspectiva da criança, a capacidade e a necessidade de imaginar que elas possuem – deixando de lado uma discussão necessária: a adequação dos produtos ao público infantil. Mas é o Conar que está atento a isso. Um exemplo: seu anexo H, no qual determina que propaganda de refrigerantes e alimentos industrializados não deva encorajar o consumo excessivo, menosprezar a alimentação saudável, desmerecer o papel dos pais como educadores e orientadores, entre outros. Enquanto a sociedade se ocupa em julgar e condenar a publicidade, é ela quem tenta frear o consumo de produtos tão inadequados, e até mesmo nocivos, literalmente, à saúde das crianças brasileiras.

Sonho com o dia em que essa discussão se desloque dos argumentos utilizados pela linguagem publicitária e se dirija aos ingredientes, entre outras coisas, utilizados nos produtos direcionados às crianças. Que fiscalizar, problematizar e proibir uma indústria escusa, obscura e blindada seja o foco da nossa atenção. Sonho com o dia em que os institutos se ocupem com o abuso que as nossas crianças sofrem no Brasil e mais, contribuam para a discussão e ação dos indivíduos. Serei a primeira publicitária a defender e gritar a manchete: acabou o abuso!

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Rafiza Varão, Karina Gomes Barbosa e Raquel Cantarelli são professoras de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília