“O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira.” O comentário de Armando Nogueira, numa antiga entrevista à revista Playboy, em janeiro de 1988, sintetiza uma ideia largamente aceita no meio profissional: a de que o jornalista não pode sofrer nenhum tipo de restrição para realizar seu trabalho, porque, em qualquer circunstância, estaria agindo em nome do interesse público. Especialmente quando revela o que algum interesse superior ou escuso deseja manter escondido.
A fragilidade do argumento deveria ser evidente: bastaria pensar na hipótese de chantagem, para ficarmos num exemplo extremo, ou nos mais corriqueiros casos de divulgação de informações precariamente apuradas e eventualmente falsas. Afinal, há bons e maus jornalistas, mais ou menos competentes, mais ou menos – e, às vezes, nem um pouco – éticos, como ocorre em qualquer atividade. Porém, a mística em torno da profissão dificulta enormemente a discussão sobre os limites que os jornalistas deveriam respeitar.
O caso do jornal Diário da Região, de São José do Rio Preto (SP), fornece uma boa oportunidade para essa discussão: em 2011, o repórter Allan de Abreu publicou matérias baseadas em escutas telefônicas realizadas pela Polícia Federal, que apurava denúncia de corrupção na Delegacia Regional do Trabalho. Procurado pelo Ministério Público, negou-se a revelar suas fontes e foi indiciado por ter divulgado informações que estavam sob segredo de Justiça. Agora, tanto ele quanto o jornal para o qual trabalha tiveram seus sigilos telefônicos quebrados, embora caiba recurso à decisão.
Discutir responsabilidades
A ombudsman da Folha de S.Paulo dedicou a primeira parte de sua coluna de domingo (21/12, ver aqui) a este caso, afirmando, logo na abertura:
“Não se faz jornalismo sem fontes, e não se fazem fontes sem relação de confiança e garantia de anonimato. Tentar forçar um repórter a revelar quem lhe passou uma informação é mais do que desrespeitar a ética de uma profissão. É atentar contra o direito de toda a sociedade à liberdade de informação”.
Disso não cabe a menor dúvida. O problema é considerar que só os responsáveis pela condução das investigações devem zelar pelo segredo de Justiça. Por que os jornalistas também não estariam implicados nesse compromisso? Por que estariam autorizados a romper com uma determinação judicial? Por que não seriam cúmplices de uma violação?
Não é uma questão simples. Envolve, de saída, a própria discussão a respeito dos critérios para o estabelecimento do sigilo a determinados casos. Mas essa discussão não costuma ser travada, de modo que, em qualquer situação, o jornalista empenha-se em buscar a informação escondida e exclusiva, desobrigando-se de revelar os métodos utilizados para obtê-la. Seja quando vá “bisbilhotar” por seu próprio esforço, seja quando – o que parece bem mais comum – receba o material decorrente de vazamentos, e aqui não é possível ignorar os interesses que orientam os responsáveis por essa iniciativa: no mínimo, deveria ser claro que, nessa relação, o repórter se submete à fonte, que vai soltando as informações de acordo com sua conveniência.
A ideia de que o repórter está autorizado a tudo devassar embute, além do mais, a crença de que todas as informações obtidas serão divulgadas. Não é bem assim: jornalistas não publicam tudo o que sabem. Em casos de sequestro, só para dar um exemplo conhecido, normalmente comprometem-se em silenciar para não atrapalhar as investigações, embora todos tenhamos na memória a aberração da cobertura do sequestro da jovem Eloá Pimentel, em 2008, transmitido ao vivo com interferência direta de repórteres e apresentadores de programas populares de TV, e que resultou na morte da garota.
Contestar as pressões para que os jornalistas revelem suas fontes é essencial, pelos motivos já citados. Mas também deveria ser necessário pôr em causa certas práticas que, de tão recorrentes, passam a ser naturalizadas e aparecem como normais e indiscutíveis. O caso do jornal de São José do Rio Preto poderia proporcionar essa oportunidade.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)