Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Água, do racionamento ao desgoverno

O consumo exagerado e o desperdício de água não são privilégios de nenhuma cidade ou estado brasileiro. Tanto é assim que mesmo Curitiba, a badalada capital “ecológica” do país, teve de adotar, no inverno de 2006, um programa de racionamento, sob pena de o sistema de abastecimento de água entrar em colapso. O regime de racionamento em Curitiba teve início em 4/8/2006 e foi acompanhado de perto pela imprensa local. O assunto também repercutiu na imprensa nacional.

No sítio eletrônico da empresa responsável pelo serviço, a Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná), era possível encontrar alguns informes, ainda que tendenciosos e inconsistentes, a respeito do que estava se passando com o sistema de abastecimento de água da Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Eis aqui duas pérolas que encontrei no sítio da empresa (ver aqui; os acessos ocorreram em 13/8 e 1/9/2006):

>> “Falta de chuva obriga Sanepar a implantar rodízio no abastecimento de água na RMC”; e

>> “O rodízio no fornecimento de água por causa da seca, retorna para o Grupo 1” (em 2006, a RMC era abastecida por três barragens; a região atendida pelas barragens Piraquara e Iraí foi dividida em sete grupos, um para cada dia da semana; a região atendida pela barragem do Passaúna não foi incluída no rodízio).

Na época, de acordo com a Sanepar, a produção necessária para atender a demanda da Região Metropolitana de Curitiba era de aproximadamente 500 mil metros cúbicos de água por dia. Com o rodízio, a empresa esperava reduzir o consumo diário em cerca de 70 mil metros cúbicos de água (15% do total). Se esse percentual fosse alcançado, a economia feita a cada sete dias de rodízio equivaleria ao volume extraído das barragens em um dia.

Em busca da causa perdida

O clima do estado do Paraná se caracteriza por um verão (dezembro a março) quente e chuvoso e um inverno (junho a setembro) frio e seco. Em certos anos, os valores extremos (máximos e mínimos) podem estar um pouco deslocados, mas esse é o padrão geral para o estado. Trocando em miúdos, a escassez de chuvas durante o inverno é um fenômeno natural, conhecido e perfeitamente previsível.

Isso implica, entre outras coisas, o seguinte: todo e qualquer empreendimento humano que seja influenciável (ainda que remotamente) por essa variação sazonal deve necessariamente incorporá-la ao rol das variáveis a serem analisadas em seu planejamento prévio. Quer dizer, a escassez sazonal de chuvas não é ela própria a causa de nenhum apagão ou racionamento que ocorra ou venha a ocorrer, seja no fornecimento de energia elétrica ou no de água.

A rigor, a origem do problema está ligada a outros fatores, dois dos quais merecem especial atenção: consumo excessivo e desperdício. Se esses padrões de consumo permanecem inalterados, principalmente na época do ano durante a qual a disponibilidade dos recursos diminui (às vezes, de modo drástico), poderemos então apostar que situações como a que Curitiba enfrentou em 2006 serão cada vez mais comuns nos próximos anos. É uma situação preocupante. Afinal, se temos racionamento de água em uma cidade tida como exemplo para outros centros urbanos, como será que as coisas andam em lugares ainda mais caóticos?

Veja-se o caso da cidade de São Paulo. Muitos moradores daquela metrópole – o maior aglomerado urbano do país – já se habituaram, nas últimas duas ou três décadas, a viver sob um regime semipermanente de racionamento: no inverno, por causa da “estiagem”; no verão, por causa da elevação na taxa de consumo per capita. Parece que o racionamento, a exemplo dos congestionamentos no trânsito, vai se converter também em um tormento diário e permanente na vida dos paulistanos.

Quando governantes e administradores falam em racionar – e isso vale não só para Curitiba ou São Paulo, mas para qualquer outra cidade do país –, eles não estão falando propriamente em racionalizar o sistema (o que talvez viesse a contornar o problema de modo efetivo). Na verdade, estão apenas dizendo que é necessário dosar o acesso (em geral, anárquico) a uma fonte finita de recursos (no caso, a água). Por trás do racionamento, há em geral um acentuado ingrediente classista: os bairros mais pobres tendem a ficar sem água mais frequentemente do que os bairros mais ricos, sobretudo quando comparamos bairros situados em zonas topograficamente equivalentes.

Medidas corretivas

A escassez ou mesmo a falta de água tende a se tornar um problema crônico nos grandes centros urbanos, principalmente naqueles lugares onde medidas apropriadas não estão sendo adotadas. E essas medidas corretivas não dependem nem um pouco da construção de novos reservatórios ou barragens. Algumas delas, por exemplo, têm a ver com o restabelecimento da recarga natural do estoque subterrâneo de água. Nesse sentido, cedo ou tarde teremos de enfrentar (e reverter) a questão da impermeabilização excessiva do solo urbano. Outro importante conjunto de medidas tem a ver com a proteção de áreas ecologicamente sensíveis, como nascentes e o entorno de reservatórios e cursos d’água, muitos dos quais estão hoje bastante degradados, em consequência principalmente da ocupação desordenada.

Por fim, medidas adicionais terão de ser adotadas visando enfrentar, equacionar e, quem sabe, resolver a questão do desperdício. No caso dos centros urbanos, por exemplo, não há o menor sentido em continuarmos gastando tanta água tratada para fazer fluir o sistema de coleta de esgoto. Também não tem cabimento continuar tolerando o desperdício de água subterrânea não tratada, como o que é promovido pelos postos de combustíveis que oferecem “duchas grátis” aos seus clientes. A rigor, a ducha só é grátis porque a água está sendo captada por meio da exploração de poços artesianos, muitos dos quais são clandestinos e irregulares. De resto, o “grátis” só vale para alguns consumidores atuais, pois, em um futuro que se avizinha cada vez mais próximo, a conta será rateada entre todos.

Coda

Os parágrafos acima, cuja versão original foi escrita e publicada em 2006 (ver artigo “Racionamento na ‘capital ecológica’ do país”), foram extraídos da recém-lançada segunda edição do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas. De 2006 para cá, temo que o quadro geral não tenha melhorado muito; ao contrário…

Veja-se a situação aflitiva, quase dramática, que está sendo enfrentada hoje por boa parte da população do estado de São Paulo. Por um lado, o nível dos reservatórios vem, desde o ano passado, atingindo sucessivos recordes negativos; por seu turno, no entanto, o executivo estadual parece querer empurrar o problema para debaixo do tapete, pouco ou nada tendo feito para evitar o agravamento da crise. É bom ressaltar que a queda no nível dos reservatórios era esperada pelos técnicos da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), a empresa responsável pelo abastecimento de água. Ocorre que não são os técnicos da Sabesp que dirigem o estado; essa função, ao que parece, cabe aos secretários estaduais e, em última análise, ao governador.

A propósito, cabe aqui registrar que, embora a grande imprensa paulista (e, por extensão, boa parte da grande imprensa brasileira) pareça disposta a continuar blindando o governador (já visando, ao que parece, às eleições presidenciais de 2018; uma miopia política que mostra bem o estado de coisas em que vivemos), há hoje em curso mais de um pedido formal visando ao seu afastamento. Um deles, protocolado por um deputado estadual (ver matéria “SP: Giannazi oficializa pedido de impeachment de Geraldo Alckmin”, publicada na revista Caros Amigos, em 24/10/2014), usa como argumento a “atitude deliberadamente omissa” do chefe do executivo estadual diante da atual “crise da água”.

Meses atrás, mesmo sabendo dos riscos iminentes de escassez e falta de água na região metropolitana de São Paulo (e em algumas cidades do interior), o governador (então candidato à reeleição), com medo de perder votos, teria preferido o discurso vazio e o silêncio, em vez de enfrentar a situação de frente – e.g., assumindo o problema e iniciando logo um programa de racionamento moderado. Os frutos desse desgoverno vêm sendo colhidos há meses por muitos paulistanos e, em breve, um drástico (ainda que camuflado) programa de “restrição hídrica” deverá ser adotado, sob pena de as torneiras secarem de vez… Resta saber se a grande imprensa continuará impedindo que a lama das represas vazias respingue nos ternos engomados do governador.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª edição, 2014)