O Brasil evoluiu em termos de transparência governamental nos últimos anos, principalmente na divulgação das contas públicas, mas ainda padece da falta de uma lei que revolucione a forma como os empresários se relacionam com o governo. Hoje, qualquer cidadão pode obter informações a respeito do orçamento federal, mas o país ainda não dispõe de uma Lei de Acesso a Informações Públicas que regulamente os procedimentos para o acesso a dados nas três esferas de governo: prefeituras, Estados e União.
Para Andrew Puddephatt, especialista britânico em liberdade de expressão, se for aprovada, essa lei seria muito utilizada pelos empresários com interesses em fazer negócios com o governo. “Os empresários são os principais usuários das Leis de Acesso à Informação em diversos países”, revelou.
Puddephatt trabalhou na implementação dessas leis na África do Sul, no Reino Unido e no México. Ele também atuou pelo acesso à informação na Nigéria, Afeganistão, Romênia, Turquia, Albânia, Croácia e Sérvia. Ao fim, constatou que as empresas usam leis de acesso à informação para preparar a participação em licitações, assinar contratos públicos, conhecer as bases de dados de informações públicas, verificar sistemas de subsídios e benefícios governamentais.
Na quinta-feira (28/9), o Senado perdeu a chance de superar a falta dessa lei no Brasil. O projeto que acaba com o sigilo eterno de documentos públicos estava pronto para ser votado na Comissão de Relações Exteriores, de onde iria para o plenário, mas o senador Fernando Collor (PTB-AL), que preside a comissão, avocou o texto para si. A avocação de Collor desagradou o governo da presidente Dilma Rousseff e causou apreensão ao relator do texto, Walter Pinheiro (PT-BA). “Ficamos tristes, pois foi na semana que antecede o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa (3 de maio)”, lamentou Pinheiro.
A ideia do governo era aprovar o texto, na semana passada, para permitir à presidente Dilma sancioná-lo em 3 de maio. Agora, há dois temores principais. O primeiro está na possibilidade de a comissão ceder a apelos do Itamaraty e do Ministério da Defesa, que temem que o amplo acesso a documentos públicos resulte em embaraços internacionais para o Brasil ou em riscos para a segurança nacional.
O segundo temor é que Collor faça acréscimos ao projeto de lei. Se isso acontecer, o texto que já passou pela Câmara dos Deputados e por três comissões do Senado (Constituição e Justiça, Tecnologia e Direitos Humanos) teria de ser apreciado novamente. “O projeto é um instrumento que democratiza o acesso à informação”, defendeu Pinheiro. “É preciso fazer a publicização dos fatos para consolidar a democracia”, completou o senador.
A vinda de Puddephatt ao Brasil poderia ter coincidido com a sanção da Lei de Acesso a Informações Públicas. Ele estará em Brasília, esta semana, para participar de um evento da Unesco, em comemoração ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, na terça-feira, e fará palestra na Controladoria-Geral da União (CGU), na quinta. Antes, concedeu a seguinte entrevista.
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Quais as principais características de governos transparentes e daqueles que protegem demais as informações?
Andrew Puddephatt – Governos transparentes são mais capazes, eficientes, honestos e eficazes. Os governos mais fechados são o oposto – ineficientes, muitas vezes corruptos, e sem uma capacidade real de atender as necessidades de sua população.
Quem são os principais usuários das Leis de Acesso à Informação em países que aprovaram essa legislação?
A.P. – Os principais grupos que solicitam informações são empresários, jornalistas e ativistas de organizações não governamentais. Mas o uso das leis varia muito. No Reino Unido, 320 mil pessoas solicitaram informações, em três anos, após a promulgação da lei. Na Suíça, foram apenas 500 – o que reflete o nível de publicidade e interesse em cada país.
Que informações costumam ser mais solicitadas?
A.P. – Em geral, dois terços dos pedidos de informação vão para instituições de governos locais, e com frequência envolvem temas como planejamento de políticas públicas. Eu anteciparia que, no Brasil, a maior parte dos pedidos de informação também terá como destino os governos locais (prefeituras). O maior pedido de informações feito de uma só vez, e garantido pelo Judiciário na Europa, foi pela divulgação de dados sobre subsídios à agricultura. Eles mostraram que a maior parte dos subsídios europeus ia para grandes corporações e não para pequenos produtores – contrariando a lógica do programa original de subsídios. Isso foi um reflexo da grande preocupação dos europeus quanto ao sistema de subsídios. Em geral, as áreas com maior quantidade de pedidos são saúde, educação, emprego, agricultura e iniciativas governamentais envolvendo as empresas.
Como essas leis são usadas pelos empresários?
A.P. – Os empresários são os principais usuários das Leis de Acesso à Informação em diversos países. Os tipos de questões que geram interesse são os mecanismos pelos quais decisões governamentais importantes são tomadas e que dados são usados pelos governos nos processos de tomada de decisão. Claramente, isso mostra aos empresários como influenciar a política governamental.
Quais os temas que mais interessam às empresas?
A.P. – As empresas também se interessam por informações sobre licitações e contratos públicos. Tudo que tem a ver com processos, resultados e critérios usados nas decisões. Os empresários são muito interessados em conhecer as bases de dados dos governos, devido a seu potencial uso comercial, principalmente aquelas que trazem um perfil da população e oferecem informações valiosas de mercado. Finalmente, as empresas são obviamente interessadas em qualquer tipo de informação relacionada a subsídios e benefícios governamentais – quem os recebe, quanto, por que motivo etc. O governo reúne uma grande quantidade de informações de interesse dos empresários, e com potencial valor comercial.
Que tipos de desafios o Brasil terá que enfrentar ao implementar uma Lei de Acesso à Informação?
A.P. – As Leis de Acesso são geralmente lançadas com um entusiasmo inicial, mas, depois, passam por revisões para restringir seu funcionamento, quando os políticos começam a sentir certo incômodo, ou simplesmente sofrem negligência burocrática, com a escassez de recursos. Depois de observar o desenvolvimento da Lei de Acesso à Informação nos Estados da Austrália, um observador apontou que haveria quatro estágios na vida de um sistema de acesso à informação: otimismo inicial, pessimismo crescente, dando lugar a um “revisionismo” para limitar sua abrangência ou aplicação e, finalmente, um retorno aos fundamentos da lei.
Quais os obstáculos à implementação da lei?
A.P. – Os principais obstáculos dizem respeito ao gerenciamento interno de arquivos, e como alinhar essa política com os tipos de pedidos de informação recebidos. Há necessidade de criar uma sistemática para receber e responder essas solicitações. O Reino Unido gastou quatro anos se preparando para a implementação da lei e, depois, ela foi aplicada simultaneamente em 100 mil instituições. Uma estratégia melhor talvez seja implementar a lei, passo a passo, nos ministérios e departamentos do governo, com um forte apoio central.
O que mudará, na prática, na forma de operar do governo?
A.P. – Os procedimentos internos e a administração do governo precisam ser robustos para se estabelecer um sistema de acesso à informação. O que mais se precisa é que o governo dê um forte apoio político e garanta autoridade a um departamento central forte que tenha a responsabilidade de guiar a administração pública no processo de implementação do sistema de acesso à informação.
No Brasil, a Lei de Acesso enfrenta resistências do Itamaraty e das Forças Armadas. Esses temores se justificam?
A.P. – Há sempre certa apreensão no setor de segurança, mas, no caso brasileiro, essa resistência pode estar mais concentrada devido aos conflitos internos anteriores (a ditadura militar) e o potencial de se usar o direito de acesso à informação para expor crimes do passado. Trata-se essencialmente de uma questão política: quanta proteção o Estado e o governo estão dispostos a conceder a seus antigos funcionários, mesmo que eles tenham cometido abusos contra os direitos humanos? Esta foi uma preocupação menor em países como o Reino Unido, por razões óbvias, e na África do Sul havia um processo de verdade e reconciliação que lidava com essas questões. Poderia ser uma boa solução aqui no Brasil.
Outros países enfrentaram resistência semelhante?
A.P. – Em geral, autoridades e funcionários públicos de qualquer país ficam apreensivos. No Reino Unido, a equipe central do governo estava mais preocupada em proteger a privacidade das discussões internas. Há exceções ao acesso a informações relacionadas à segurança, o que traz maior confiança aos funcionários dessa área. A questão mais delicada é se as discussões privadas de autoridades governamentais devem ser abertas ao público. Se essas discussões são públicas, elas serão menos francas e honestas, se forem privadas, ocorrerá o contrário. O WikiLeaks é uma boa ilustração do que as pessoas dizem quando acreditam que suas comunicações são privadas. É claro que queremos abertura, mas também queremos governos que sejam honestos – portanto, há que se ter um equilíbrio.
O Brasil está liderando, ao lado do governo americano, uma rede internacional de transparência. No entanto, de uma lista de 16 requisitos, o Brasil atingiu 15: ficou faltando apenas a Lei de Acesso à Informação. Isso torna o Brasil um modelo incompleto de transparência?
A.P. – A transparência é sempre um processo. Não é um destino ao qual se chega. O Brasil fez um enorme progresso nessa área e tem demonstrado uma vontade real de se tornar um governo mais transparente. A Lei de Acesso é parte final desse processo e deve ser bem-vinda como um passo significativo. Mas mesmo assim, a lei levará algum tempo para se disseminar e ser aplicada efetivamente por toda a administração pública. Certamente, haverá dificuldades na implementação. Todo país que aprovou uma Lei de Acesso à Informação enfrentou esse tipo de problema.
Hoje, há documentos no Brasil que podem ficar eternamente sob sigilo. Essa cultura de segredo é um obstáculo à aprovação da Lei de Acesso?
A.P. – Todos os governos têm uma cultura de segredo. É inevitável. Um dos desafios é como enfrentar essa cultura. Devemos lembrar que os benefícios de se ter mais informações não são sentidos somente pela população. A experiência do Reino Unido e de outros países mostra que muitos funcionários e autoridades ficam felizes de divulgar informação e gostam da oportunidade que a Lei de Acesso lhes dá para fazer isso. Além do mais, um bom sistema de acesso à informação quase sempre implica a necessidade de se reformar os sistemas de gerenciamento interno de dados, o que torna mais fácil a vida dos funcionários públicos.
A discussão de uma Lei de Acesso à Informação no Brasil tem sido bastante focada na abertura de arquivos históricos, como papéis da época da ditadura. Mas os efeitos da lei são bem mais amplos. O que a aprovação dessa lei significa, na prática?
A.P. – Deverá levar algum tempo para que todas as implicações da lei sejam compreendidas – uma Lei de Acesso à Informação tem os mais diversos tipos de impacto. A experiência de outros países é interessante. A pesquisa mais extensa sobre o impacto de uma Lei de Acesso à Informação foi feita no Reino Unido, onde a maioria (80%) dos funcionários públicos entrevistados opinou que a lei era algo muito positivo ou moderadamente positivo. Eles sentiram que a lei promoveu uma cultura de maior abertura, levou as autoridades a publicar uma quantidade maior de informações e encorajou organizações a aprimorarem seus sistemas de gerenciamento de dados. Essas leis também parecem produzir um aumento na confiança pública. Resultam num aumento de gastos e no número de funcionários, é claro, o que faz com que muitos governos publiquem uma grande quantidade de informações quando uma Lei de Acesso é aprovada, para evitar a necessidade das pessoas requisitarem essas informações.
Qual será a extensão da divulgação de documentos governamentais?
A.P. – Isso dependerá dos esquemas acordados pelo governo e das datas definidas para implementação da lei. A partir do momento que uma Lei de Acesso é implementada, as pessoas terão o direito de pedir todos os tipos de informação que não estejam definidas como restritas pela lei. A pergunta interessante é que tipos de informação o governo vai decidir publicar.
O Brasil está no ranking dos países mais avançados do mundo no que diz respeito à publicação de informações governamentais relacionadas ao orçamento. Isso é suficiente para se dizer que o governo é transparente?
A.P. – Transparência é um processo dentro de um governo. Ela é formada por diversos elementos. Um deles é uma Lei de Acesso que garanta aos cidadãos o direito de solicitar informações. O segundo elemento é a transparência pró-ativa, que significa publicar uma grande quantidade de informações de diversas categorias – uma coisa que o governo brasileiro está bastante aberto a fazer. O terceiro elemento é um sistema aberto de dados no qual a informação é publicada online e as pessoas podem questioná-la da forma que quiserem. Isso é algo muito relevante para o Brasil. Todos esses três elementos são necessários para um governo verdadeiramente aberto.
Na era da comunicação eletrônica, muita informação pode significar informação nenhuma?
A.P. – É importante que os dados do governo sejam publicados num formato que faça sentido para o usuário da informação – ou seja, o público em geral – e não somente para a burocracia. Uma opção é criar um único portal, como foi feito no Reino Unido, que funciona como entrada para toda informação relevante, publicada de maneira que as pessoas possam facilmente acessá-la, baixá-la e organizá-la da forma que quiserem.