Parece uma das dez pragas do Egito. Aliás, até pelo nome científico do mosquito transmissor: Aedes Aegypti, Casa do Egito.
A dengue continua assolando o Rio de Janeiro. No domingo (30/3), morreram duas mulheres. Uma no frescor dos 21 anos. A outra estava na flor dos 40, o equivalente a 20, pois a expectativa de vida dobrou no Brasil nos últimos cem anos, e com 40 a pessoa ainda não chegou à velhice.
As tendas da Aeronáutica e os hospitais de campanha montados à beira de avenidas e ruas mostram que as Forças Armadas, preparadas para enfrentar outro tipo de inimigo, estão combatendo os mosquitos.
O Hospital São Lucas, particular, de Copacabana, organizou área específica para atender as vítimas do minúsculo inimigo, entretanto terrível. E num cartaz que traz o inseto assassino, explica os sintomas: ‘Fezes pretas; vômitos freqüentes; muito sono ou agitação; dor abdominal; tontura; vista escura; desmaio; pele pálida, fria e seca; dificuldade respiratória; sangramento e diminuição no volume da urina’.
Remédio oficial
Um verbo está sendo muito usado pelos cariocas. É parecido com o original latino que está na Bíblia. Escreveu São Jerônimo, tradutor da Bíblia para o latim, contando providência tomada pelos egípcios para combater uma das dez pragas, justamente aquela que transformou a água em sangue:
‘Foderunt autem omnes Aegyptii per circuitum fluminis aquam, ut biberent; non enim poterant bibere de aqua fluminis’.
O verbo ‘fodere’ em latim não é palavrão. Seu significado é cavar. O conhecido palavrão português tem outra origem. É o latim vulgar ‘futere’, que já estava na língua portuguesa no século 13.
O descalabro da saúde em nosso país não está apenas na falta de prevenção das doenças. Está presente também na língua portuguesa. Escrevi em ‘O Português das Bulas’ (A Língua Nossa de Cada Dia, Editora Novo Século, pág. 217):
‘As bulas de remédios são inúteis para os consumidores. Além de trazerem informações desnecessárias e assustadoras, vêm carregadas de advertências confusas, que podem abalar a confiança que os clientes têm nos médicos. O objetivo é fornecer argumentos aos advogados dos laboratórios em eventuais ações judiciais. Os consumidores que se danem’.
E depois lembro o óbvio, ao comentar as cores que identificam medicamentos que requerem receita:
‘Com faixas vermelhas ou pretas, os remédios custam sempre uma nota preta’.
Será que o carioca vai precisar recorrer às famosas garrafadas para combater a dengue? Como se sabe, antigamente a embalagem mais comum dos remédios era uma garrafinha. Pendurada num cordão vinha a bula que tinha o fim de atestar que não era uma garrafada, era um remédio oficial. A garrafinha passou a ser denominada frasco. A substância, que era líquida, passou a ser oferecida em comprimidos.
O nome do bicho
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – parece nome de cartão de crédito – tomou a iniciativa de modificar as regras para a redação das bulas. Que os laboratórios chamem profissionais que saibam escrever. Por enquanto, as bulas continuam escritas em hieróglifos.
Os redatores das notícias sobre a dengue que assola o Rio de Janeiro estão errando a grafia do nome do mosquito que a transmite.
Podem consultar os dicionários, mas neste caso é preciso esclarecer que dentre os mais consultados do país, apenas o Michaelis diz que é Aedes aegyptii, errando o segundo nome. O Aurélio, o Aulete e o Houaiss grafam corretamente o nome do inseto, que é Aedes Aegypti, Casa do Egito. O Michaelis, usualmente muito confiável, ao mudar Aegypti para aegyptii, muda o nome para Casa do egípcio.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação; seu livro mais recente é o romance Goethe e Barrabás (Editora Novo Século); www.deonisio.com.br