Somos um jornal. O título era em negrito, o corpo enorme ocupava todo o alto da capa, logo abaixo do famoso logotipo de fundo vermelho. Depois dessa afirmação identitária, que soava como um grito, vinham em corpo menor: “não um restaurante, não uma rede social, não um espaço cultural, não um estúdio de televisão, não um bar, não um criadora de start-up…”
Indignados com a proposta dos três acionistas que “procuram um modelo econômico viável”, os jornalistas do Libération resolveram responder usando a capa e as primeiras cinco páginas do jornal do fim de semana, datado de 8 e 9 de fevereiro. Na véspera, sexta-feira (7/2), o jornal não saiu pois no dia anterior seus 290 assalariados decidiram entrar em greve. E na sexta à tarde receberam o texto da proposta dos acionistas para “salvar Libération”.
Aos 40 anos completados no ano passado, depois de passar por alguns liftings para se manter o mesmo jornal irreverente e provocador, guardando seu DNA de esquerda – afinal, foi fundado por maoístas reunidos em torno de Jean-Paul Sartre –, Libération vive agora uma crise inédita. Os acionistas procuram novos investidores, mas com a atual crise do impresso no mundo inteiro não parece fácil.
Plano maluco
No panorama mundial de crise da imprensa escrita, o jornal perdeu no ano passado 15% de seus leitores e suas vendas caíram para pouco menos de 100 mil exemplares diários, número simbólico que acendeu uma luz vermelha, depois de registrar perda estimada entre 1 milhão a 1,5 milhão de euros em 2013.
Desde novembro, quando a Redação exigiu a substituição de Nicolas Demorand e Philippe Nicolas, que fazem parte do diretório que dirige o jornal, Libération vive uma crise interna. A tensão entre os assalariados e os acionistas (Bruno Ledoux, que detém 26,64% do capital e é dono do imóvel onde funciona o jornal; Édouard de Rothschild, que detém também 26,64%; além do grupo italiano Ersel, com 22,82%) vem se agravando.
Mas a gota d’água foi o documento que chegou à Redação no dia seguinte à greve de quinta-feira (6/2), que privou os leitores do Libération na sexta-feira. No meio da tarde, os jornalistas reunidos em Assembleia Geral receberam um texto dos acionistas que julgaram delirante. Nele, os donos do jornal detalham o que pensam ser a solução para salvar a empresa: querem monetiser (ou “monetizar”, um neologismo que quer dizer vender, comercializar) a marca para salvar o jornal, transformando o tradicional prédio de Libération, na Rue Béranger, em “espaço cultural e de conferência compreendendo um estúdio de televisão, um estúdio de rádio, um restaurante, um bar, uma empresa de start-up, enfim, um lugar de trocas aberto e acessível a todos, jornalistas, artistas, escritores, filósofos, políticos, designers”…
O texto dos acionistas falava inclusive da assessoria do designer Philippe Starck para transformar os 4.500 m2 do jornal em algo rentável. Enfim, monetiser a marca. E isso, graças “à força da marca Libération, sua legitimidade histórica e gráfica única na história da imprensa francesa e mesmo mundial”, defendiam os acionistas. Essa mudança do visual da sede, mais a criação das vertentes paralelas, seria acompanhada de redução voluntária de salários dos jornalistas e aposentadoria antecipada dos que estivessem perto da data de partir.
Foi a gota d’água. Os jornalistas passaram a sexta-feira reunidos e resolveram fazer a capa e cinco páginas dirigindo-se diretamente aos leitores. No texto interno diziam o que pensam da proposta dos acionistas: “O plano é claro, é Libération sem Libération. Vai ser preciso mudar o jornal da atual sede, mas guardar o belo logotipo. Expulsar os jornalistas, mas monetizar a marca”, explicou o texto da Redação aos leitores.
Emblema do pluralismo
Por pensarem que um jornal como Libération não é apenas uma marca que tem um potencial comercial fabuloso, os jornalistas resolveram publicar em página inteira a carta enviada em dezembro pelo jornalista de Libération e filósofo Robert Maggiori a um dos diretores, François Moulias, novo integrante do diretório, que exerce o papel de intermediário entre a Redação e os acionistas.
Na carta, Maggiori diz que um jornal faz “parte do espaço público no qual se dá o debate democrático, como uma instância cultural, intelectual, política e social. Ele tem uma história própria, entremeada com a História, é promotor de valores, participa da formação dos cidadãos. Por isso, não é contraditório dizer que uma empresa em declínio pode produzir um jornal que preenche todas essas funções ou que, ao contrário, uma empresa dinâmica pode produzir um jornal doente, incapaz de exercer seu papel”.
Resta aos jornalistas de Libération decidirem o futuro do jornal, um marco na imprensa francesa e mundial. Robert Maggiori, em dezembro passado, escrevia no seu Libé um belíssimo artigo sobre o jornal do futuro:
“Se a crise, segundo Antonio Gramsci, é aquele estado incerto em que o ‘velho’ ainda não morreu e o ‘novo’ ainda não nasceu, por que na situação crítica em que se encontram os jornais não tentar uma última cartada e pensar uma nova forma de diário que resistiria às forças econômicas, midiáticas e culturais que o destinam a ser relíquia do passado?”, perguntou Maggiori em seu texto.
Segundo ele, não seria necessário lembrar a alteração ou desfiguração do espaço público que a ausência dos jornais nas bancas provocaria. Eles são emblemas do pluralismo, da liberdade de expressão, da confrontação de opiniões, da ética da discussão e da política deliberativa, da qual fala Habermas.
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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris