A expectativa com que diferentes setores acompanham a tentativa do governo de aprovar rapidamente a Lei de Acesso à Informação, que tramita no Senado, ainda não encontra o eco merecido na mídia, com duas exceções importantes: o Valor, que publicou na terça-feira (12/4) uma página bem-informada sobre o tema, e a Folha de S.Paulo, onde o repórter Fernando Rodrigues é o principal responsável por alimentar a editoria "Poder" sobre o tema. Rodrigues preside a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e foi coordenador do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas.
"Nos demais veículos, o assunto não tem tido muito espaço", constata o ministro da Coordenadoria Geral da União (CGU), Jorge Hage, em entrevista ao Observatório da Imprensa. Opinião compartilhada pela coordenadora do escritório brasileiro da ONG Artigo 19, a advogada Paula Martins. O nome da entidade alude ao item da Declaração Universal dos Direitos Humanos que estabelece: "Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de ter opiniões sem sofrer interferência e de procurar, receber e divulgar informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras".
Hage e Martins vêm nesse pouco interesse um paradoxo, porque o jornalismo pode ser um dos principais beneficiários do acesso a informações públicas hoje ocultadas, ou de acesso dificultado pela burocracia (ver "Apagão de informações sobre Vladimir Herzog") e pelo velho costume de dividir os cidadãos em duas categorias: os iguais e os mais iguais.
Maior desafio será mudar práticas
A professora da Faculdade de Administração da UFRJ Ana Malin, que integra o corpo docente da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), iniciou pesquisa sobre um desdobramento crucial da nova legislação ainda ignorado pela mídia, apesar de sua obviedade: como obter um novo padrão de gestão na administração pública que consiga responder aos direitos do público – e obrigações dos governos federal, estaduais e municipais – que serão criados. Tarefa difícil, que imporá metas muito distantes dos atuais procedimentos administrativos.
Esse certamente será o maior desafio decorrente da adoção da nova legislação, mas o ângulo de abordagem da mídia concentra-se no fim da possibilidade de manter documentos oficiais sob segredo por tempo indeterminado. Segundo a nova lei, o prazo máximo para retenção de documentos classificados como ultrassecretos será de 25 anos, renováveis apenas uma vez.
Hage prevê avanço da participação
O ministro Hage está convencido de que quando o Projeto de Lei da Câmara 41/10 se transformar em Lei de Acesso à Informação haverá um avanço considerável da participação popular na fiscalização das ações governamentais. Ele destaca a criação do Portal da Transparência, pela CGU, uma "exposição espontânea do poder público" que representa a modalidade da transparência ativa.
"Aí estão todas as despesas da administração federal feitas até a noite da véspera do dia em que as páginas são visitadas, por sinal de modo crescente a cada mês", diz o ministro da CGU. "O portal tem recebido todo tipo de feedback, inclusive de pequenas comunidades, de onde partem, por exemplo, denúncias sobre recebimento indevido do Bolsa Família."
O ministro não vê como obstáculo importante o acesso ainda relativamente baixo da população brasileira à internet. "Existem programas de inclusão digital, quiosques de acesso à internet mantidos por prefeituras", afirma. "Mais ou menos 40% da população do país já dispõem de alguma forma de acesso à rede."
A inserção de um formulário para consultas específicas vai inaugurar, segundo Hage, "uma abertura no campo da transparência passiva, acionada por pedidos de informação específicos. É algo que o Brasil está devendo há muito tempo".
Na opinião do ministro, a cobertura jornalística do tema não foi muito extensa até aqui. Ele excetua dessa avaliação o empenho do jornalista Fernando Rodrigues, "um dos baluartes dessa luta", que resultou em cobertura mais atenta da Folha, e matérias publicadas no Valor. Na televisão, diz Hage, o assunto só aflora durante entrevistas mais longas que concede, quando há oportunidade de abordar diferentes questões.
Mídia colabora pouco para ampliar consciência
Paula Martins, da ONG Artigo 19, relembra que a primeira lei sobre acesso a informações públicas foi elaborada em 2003, no início do governo Lula. Em 2009 foi elaborado novo projeto, o que está no Congresso. Segundo a advogada, "a mídia colabora muito pouco para a ampliação da consciência sobre o tema".
"Há alguma coisa sobre transparência e e-governo, mas falta informação que vá além dos orçamentos públicos", aponta Paula. "Por exemplo, sobre a Lei de Acesso a Informação Ambiental, a Lei Maria da Penha – que no final de 2010 ganhou reforço com portais na internet destinados ao público jovem e a profissionais de direito −, normas que estabelecem sistemas de informação, bancos de dados criados que não conversam uns com os outros, ou bancos de dados que nem foram criados."
Para a advogada, o jornalismo investigativo de qualidade será beneficiado com a nova regulação, mas essa expectativa não se refletiu numa cobertura jornalística mais intensa, diferentemente de outros países, onde a mídia teve papel destacado no processo de reformulação legislativa.
Paula Martins destaca a institucionalização, pela nova lei, do direito de se fazer um pedido de informação e receber uma resposta, e da divulgação proativa de informações mínimas, por parte dos governos. Ela chama a atenção para o fato de que a colaboração entre os governos brasileiro e americano em torno de uma estratégia para a transparência, acertada entre os presidentes Dilma Rousseff e Barack Obama, torna o assunto uma questão de Estado.
Mais democracia vai requerer muito trabalho
A professora da UFRJ Ana Malin saúda a iniciativa de modernizar a legislação como avanço nos campos democrático e administrativo, mas estabelece uma divisão entre o lado político, ligado à questão da transparência e da cidadania, e as questões de gestão. "Imagine-se o que implica mudar o padrão de funcionamento do serviço público para levar essa lei à pratica, obter os padrões de gestão na administração que consigam responder a essas novas exigências", alerta. "Nos Estados Unidos, a legislação correspondente foi adotada nos anos 1970. Não é pouco trabalho. É transformar a guarda e a disposição de informações em microambientes num dos eixos estruturantes da administração publica."
Ana lembra que a antiga Secretaria Especial de Informática (SEI), criada em 1979, tinha essa intenção. Chegou a criar um catálogo de bancos de dados. Durante o governo de Fernando Collor (1990-92), a Subsecretaria de Informática da Secretaria de Administração Federal realizou um trabalho intenso, promoveu reuniões em que todos os ministérios estavam representados, de tal forma que todos os sistemas de informação fossem avaliados – mas esse esforço morreu na praia.
Digitalização em rede torna o Estado poroso
"A lei dá um marco político importante no sentido da transparência", afirma a professora, "mas coloca um conjunto de tarefas difíceis, num momento histórico em que é complicado estruturar o governo em rede, porque o Estado fica muito poroso, como se viu com o advento do Wikileaks. Num mundo de informação digital, com o volume que essa atinge, é difícil controlar."
Como exemplo da dificuldade para fazer cumprir a lei, ela aponta o Capítulo II, que em quatro artigos e numerosos parágrafos trata "do acesso a informações e da sua divulgação". No artigo 7º do projeto são listados os direitos de obter, entre outras, …
"…informação contida em registros ou documentos, produzidos ou acumulados por seus [do poder público] órgãos ou entidades, recolhidos ou não a arquivos públicos; informação produzida ou custodiada por pessoa física ou entidade privada decorrente de qualquer vínculo com seus órgãos ou entidades, mesmo que esse vínculo já tenha cessado; informação primária, íntegra, autêntica e atualizada".
Resistências previsíveis
"Para que isso envolva as grandes bases de dados, as mais importantes, será preciso mudar o padrão de trabalho de determinadas áreas da administração pública", diz Ana Malin. "E haverá resistência nas áreas que trabalham na base de acordos políticos, cuja premissa é não precisar organizar a base de dados, dar transparência. Em outras palavras, áreas que funcionam na base do fisiologismo." A professora prevê que esses setores tenderão a se "fingir de mortos" diante da mudança em direção a uma cultura mais republicana, de reconhecimento de direitos universais.
Ao mesmo tempo, é preciso haver preocupação com a privacidade, que protege a pessoa física. "Que informações vocês têm a meu respeito?". Por exemplo, diz Ana, não é possível obter uma ficha do indivíduo no Dops, antiga polícia política, e publicar o conteúdo no jornal sem consultar esse indivíduo. "Aqui, não se trata de transparência, mas do necessário sigilo. O Estado só pode tornar públicos esses dados por mandado judicial ou porque o indivíduo concordou."
Dados da Receita Federal
A Receita Federal, diz a professora, tem mecanismos que tornam complicado o acesso aos dados sob sua guarda. Mesmo assim, na campanha eleitoral de 2010 foram divulgadas informações sobre familiares e amigos do candidato presidencial José Serra. "E no Centro de São Paulo são vendidos por ambulantes CDs com dados cadastrais de milhares de contribuintes."
O padrão de seriedade encontrado nos Estados Unidos e na Europa, explica a professora, "vem da concepção burocrática no bom sentido, no sentido da impessoalidade, da separação entre cargo e pessoa".
Exatamente o contrário da tradição brasileira. Assim, será necessária uma mudança cultural. "Mas ela só não basta", diz Ana. "Serão necessários muito tempo de trabalho da gestão pública inteira e muitos recursos. Mas esperemos que a lei vire um norte para a administração pública. Isso será muito bom."
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O direito de saber — O Estado de S.Paulo (editorial)