Com a receita em queda e a despesa ainda elevada, o governo deu o primeiro sinal de desespero, em seu esforço de arrumação das contas públicas, ao vender ações do Banco do Brasil (BB) para fazer caixa. O Tesouro começou a venda em 26 de junho e conduziu as operações muito discretamente, até reconhecê-las oficialmente em 16/7. Os papéis estavam na carteira do Fundo Soberano, menos conhecido por seu nome de registro, Fundo Fiscal de Investimentos e Estabilização (FFIE).
A operação rendeu, até aquele momento, modestos R$ 23,86 milhões, uma quantia insignificante quando comparada com a meta fiscal definida para o ano, um superávit primário de R$ 66,3 bilhões para o setor público. Mas essa desproporção torna o lance especialmente dramático e justifica a chamada de primeira página, no dia 17, sexta-feira, no Globo e na Folha de S. Paulo.
Apesar da linguagem muito enrolada, a nota divulgada pelo Tesouro chamou a atenção com suficiente clareza para o problema das contas públicas. Decidiu-se vender os papéis, segundo o informe, para “tornar a carteira aderente à conjuntura macroeconômica atual”. Outra passagem é um pouco mais direta: “a estratégia de elevação da liquidez do portfólio do FFIE foi iniciada como medida prudencial em um contexto de política de consolidação fiscal do setor público”.
A Folha abriu o caderno de Economia com essa notícia. O Estadão foi mais discreto, mas também deixou claro o objetivo de catar algum dinheiro. No dia anterior, todos grandes jornais haviam noticiado a nova queda da arrecadação federal em junho. A receita do mês havia sido 2,4% menor que a de um ano antes, descontada a inflação. O total coletado no semestre, R$ 607,2 bilhões, ficou 2,87% abaixo da contabilizado no mesmo período do ano anterior. “Arrecadação cai e deixa meta fiscal mais distante”, segundo o título do Estadão.
Tão importante quanto a divulgação dos números do primeiro semestre foi a distribuição, pela Receita Federal, de um informe sobre as perspectivas da arrecadação neste ano. A nota resume estimativas feitas para 2014 e 2015 com base no potencial de crescimento da economia e, depois, nas condições do ciclo atravessado pelo país. A arrecadação efetiva no ano passado e nos primeiros meses deste ano foi pior que a projetada naquele estudo e, tudo indica, deve continuar decepcionante.
O informe foi explorado de forma desigual pelos jornais, mas, em todos os casos, ficou clara a expectativa muito ruim dos técnicos do governo. Uma avaliação mais segura das perspectivas dependeria do balanço geral, atualizado até junho, de receitas e despesas do governo central e do setor público em todos os níveis.
Esses números são normalmente publicados no fim do mês, mas na edição do dia 17 o Valor apresentou, em manchete, uma avaliação antecipada por funcionários da área econômica do governo. Segundo essas fontes, o resultado primário acumulado no semestre deve ter ficado em torno de zero. Em outras palavras: para atingir a meta proposta para todo o ano, o setor público terá de conseguir, até dezembro, um superávit primário –dinheiro para pagamento de juros –próximo de 66,3 bilhões, ou pouco superior a R$ 55 bilhões, se for levada em conta só a parte atribuída, em princípio, ao governo central.
Para alcançar esse resultado o governo precisará, além de reverter a tendência da arrecadação, fazê-la crescer aceleradamente ou cortar os gastos com enorme severidade. Mais provavelmente, deverá combinar as duas ações. Mudanças como essas, pelo menos em proporções significativas, parecem muito difíceis neste momento, especialmente quando se levam em conta os impasses políticos entre Executivo e Legislativo.
O rebaixamento da nota de crédito
Uma saída possível será uma redução da meta fiscal fixada para o ano, medida já proposta pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR) e até os últimos dias ainda rejeitada, oficialmente, pelo ministro da Fazenda. Se o projeto do senador for aprovado, a meta de superávit primário deste ano poderá cair para uma soma pouco superior a R$ 22 bilhões. Será, naturalmente, o mínimo obrigatório. O governo poderá, se tiver condições, produzir um resultado melhor.
A médio prazo, o primeiro objetivo da política fiscal é controlar o endividamento público e em seguida reduzir seu peso, isto é, a proporção entre a dívida e o produto interno bruto (PIB). Outros objetivos da política devem ser, naturalmente, o uso mais eficiente do dinheiro público e, se possível, a redução da carga tributária, mas esses pontos são politicamente mais complicados. A curto prazo o desafio mais importante é impedir o rebaixamento da nota de crédito do Brasil pelas agências de classificação.
Enquanto o pessoal da Receita fechava os números de junho, muito ruins, o Tesouro reconhecia a venda de ações do BB e a crise política se avolumava, analistas da agência Moody’s andaram por Brasília e foram recebidos pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Autoridades qualificaram a visita como rotineira, mas o incômodo foi indisfarçável. Sem dar mais detalhes, o ministro da Fazenda, segundo toda a imprensa, descreveu as conversas como boas. Mas o risco de rebaixamento permanece e ele tem usado esse argumento ao negociar a aprovação de projetos com parlamentares – e também isso tem sido noticiado pelos jornais.
As dificuldades da política de ajuste, principal compromisso do governo para este ano, devem compor boa parte da pauta econômica do segundo semestre. Os jornais cobriram a questão fiscal com razoável eficiência nos últimos quatro anos e foram capazes, por exemplo, de apontar com rapidez os lances principais da contabilidade criativa, tentativas de maquiar as contas públicas.
A gestão financeira do governo continuará exigindo atenção especial, neste ano, e muito empenho para decifrar os detalhes técnicos. O Brasil continua muito longe de ser uma Grécia, mas em todo o mundo o crédito público é um bem para ser tratado como peça de cristal.
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Rolf Kuntz é professor titular de Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP) e colunista de economia do jornal “O Estado de S. Paulo”.