Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O poder relapso, uma pauta esquecida

A economia brasileira crescerá 0,5% no próximo ano, a inflação ficará em 5,5%, o dólar custará R$ 3,37 e o setor público reservará R$ 43,83 bilhões, o superávit primário, para pagar juros. Esses números são alguns dos novos parâmetros para a elaboração do orçamento federal de 2016. Até o fim do mês a presidente Dilma Rousseff, cumprindo um ritual definido em lei, deverá mandar a proposta do  orçamento ao Congresso. O projeto será baseado naqueles parâmetros e, segundo os otimistas,  tudo estará nos conformes. Estará mesmo?  Faltando uma quinzena para o fim de agosto, ninguém poderia dizer isso.

Aqueles dados – projeções de crescimento, inflação e câmbio, por exemplo – devem constar da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Essa lei fixa as prioridades para o ano seguinte, define as metas fiscais (como o resultado primário) e, como o nome indica, serve de base ao planejamento financeiro. Num mundo normal, onde a terça-feira vem depois da segunda e o tempo é medido como sucessão de segundos, horas, dias, meses e anos, a LDO deve ficar pronta antes – e bem antes – do projeto de orçamento.

No Brasil prevalecem outros padrões. A lei diz uma coisa e as autoridades fazem outra. Os congressistas são proibidos de entrar em recesso, no meio do ano, antes de aprovar o projeto da LDO. A regra é constitucional, mas nem o parlamentar menos ilustrado em questões legais pode alegar desconhecimento.

Na falta de outra informação, suas excelências poderiam pelo menos ler a Cartilha do Orçamento editada pela Câmara dos Deputados. O texto, muito simples e com apenas nove páginas,  descreve cada uma das leis de planejamento financeiro do governo e menciona os prazos e a proibição de recesso antes da aprovação da LDO.

Neste ano essa regra foi novamente violada – ou formalmente contornada – mais uma vez. Deputados e senadores entraram em férias, no meio do ano, sem reconhecer oficialmente o período de folga. Desfrutaram, como em vários outros anos, do chamado recesso branco e deixaram de lado suas obrigações.

No começo da segunda quinzena de agosto a LDO continuava em tramitação. Na semana anterior, no dia 13, o relator do projeto, deputado Ricardo Teobaldo Cavalcanti (PTB-PE) havia divulgado os últimos acertos com o governo e com outros parlamentares e divulgado os novos parâmetros.

Esses números foram combinados com o Ministério do Planejamento e incluem as novas metas fiscais, mais baixas que as anunciadas no começo do ano, e as novas projeções de expansão econômica, inflação, juros, câmbio e dívida bruta do governo geral.

Com base no jogo combinado os ministérios econômicos puderam trabalhar no projeto do orçamento. A presidente poderá enviá-lo ao Congresso dentro do prazo, isto é, até 31 de agosto, mas a lei terá sido mais uma vez contornada.

O Estado de S. Paulo noticiou no dia 15 as novas metas incluídas na LDO, sem detalhar o conjunto de parâmetros econômicos. Outros grandes jornais ficaram longe do assunto. Mas a escassa cobertura destes novos fatos talvez nem seja a omissão mais notável. A imprensa tem coberto com algum empenho os tropeços, dificuldades, malandragens e mudanças da política fiscal. Tem até exibido competência nesse jogo. Mas tem dado pouca atenção, há muitos anos, à tramitação dos projetos da LDO e do Orçamento Geral da União.

Muito espaço foi gasto, nas últimas semanas, com o esforço da presidente Dilma Rousseff, do vice Michel Temer e dos ministros econômicos para construir a chamada agenda positiva e tirar o governo da defensiva. Trabalhou-se muito na cobertura da pauta combinada entre o Executivo e o presidente do Senado.

A Agenda Brasil, apresentada oficialmente como proposta do senador Renan Calheiros, foi explorada com diferentes níveis de detalhe pelos maiores jornais. A pauta original foi descrita como formada por 27, 28 ou 29 itens. Reações políticas foram noticiadas, assim como o abandono ou alteração de alguns itens pelo senador. Também houve acréscimos e a lista, no fim da semana, continha 43 propostas.

Enquanto se negociava. se discutia e se criticava, um assunto urgente, a LDO, continuava empacado no Congresso. Curiosamente, nem os ministros do Planejamento e da Fazenda lembraram esse detalhe ou mostraram algum desconforto diante de mais essa demonstração de desleixo legislativo. Anunciava-se uma enorme pauta de novas matérias para votação, mas, ao mesmo tempo, uma obrigação básica permanecia negligenciada.

Quando se deixa de acompanhar e de cobrar a execução de uma tarefa essencial, acaba-se colando um selo de normalidade numa lambança. Não basta mencionar o assunto em algum artigo ou editorial. A ação será muito mais eficiente se for tratada como pauta de reportagem. Outro desleixo foi lembrado – mas apenas lembrado, sem exploração do assunto – quanto o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, se dispôs a apressar a votação de contas presidenciais acumuladas há mais de vinte anos.

Comentou-se o objetivo político da votação apressada – abrir caminho para o exame das contas da presidente Dilma Rousseff. Houve recurso ao Judiciário: senadores e deputados deveriam, segundo se argumentou, trabalhar em conjunto no exame do material. Todos esses fatos foram cobertos pelos jornais. Mas faltou maior atenção a um ponto fundamental: como foi possível manter engavetadas até há poucos dias prestações de contas dos presidente Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva?

Com ou sem crise, essa questão é de enorme importância, porque envolve os costumes e os padrões de trabalho num dos três poderes da República. Não seria o caso de produzir uma reportagem sobre como são negligenciadas, no Congresso Nacional, tarefas definidoras do Poder Legislativo? Haveria muito menos dignidade na função parlamentar, se faltasse a autoridade para controlar as contas dos governantes e para interferir na elaboração do orçamento, Não é preciso ser doutor em história política para saber disso. Todo parlamentar deveria ter consciência desses dados, assim como todo pauteiro ou editor interessado no funcionamento das instituições.

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Rolf Kuntz é professor da USP e colunista do jornal O Estado de São Paulo