No final de fevereiro de 2024, os haitianos não seguiram o caminho do “dia que nasce sobre o orvalho”, recomendado com brilhantismo literário, em 1944, por seu grande escritor Jacques Roumain. Eles foram empurrados por seus “governantes” institucionais para um dos últimos círculos do Inferno de Dante. Sob o olhar indiferente de uma “comunidade internacional” cuja única preocupação é com a possibilidade de um êxodo migratório.
A crônica dos eventos atuais é um registro de crime e desordem nesse país. Na ausência de responsabilidade governamental, milhares de moradores fugiram da capital, Porto Príncipe, em busca de abrigo contra balas e facões. Em 12 de março, o Primeiro-Ministro Ariel Henry, jogou a toalha e, tomando a rota segura do estrangeiro, desembarcou do avião que aterrissou em San Juan, Porto Rico. Essa crônica, longe de ser conjuntural, é a de “um drama anunciado”. Os atores, os riscos e o cenário já estavam definidos há muito tempo. Tudo o que estava faltando era a faísca que reacenderia o incêndio anunciado.
Uma trágica cadeia de eventos vem se desenrolando desde 19 de fevereiro. Neste dia, um juiz indiciou Martine, a viúva do presidente Jovenel Moïse, assassinado em 7 de julho de 2021 por mercenários colombianos e 50 parentes da ilustre vítima. Acusada de cumplicidade, ela ficou gravemente ferida durante o ataque. Em 29 de fevereiro, gangues armadas conhecidas localmente como “gangues”, ou “Kraze Barye” (barreira de esmagamento em crioulo), mataram vários policiais. Jimmy Chérizier, líder da “família G9” (G9 an fanmi em crioulo), apelidado de “Barbecue”, assumiu a responsabilidade pelos assassinatos. Ele anunciou que a caça aos funcionários públicos continuaria até a renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry.
No sábado, 2 de março, a maior prisão do país e a prisão de Croix-des-Bouquets foram atacadas. Mais de 3.000 detentos escaparam. O número oficial de mortos no ataque é de cerca de uma dúzia. A fundação Je Klere, por sua vez, calculou o número de mortos em cerca de 30 durante a tomada da penitenciária e outros 30 ou mais na “Grand Rue”. Na segunda-feira, 4 de março, os mesmos grupos de criminosos atacaram o aeroporto internacional de Toussaint-Louverture, a academia de polícia, várias delegacias, bancos e lojas. O aeroporto foi fechado, assim como três hospitais. O primeiro-ministro foi proibido de retornar ao seu país. Na terça-feira, 5 de março, Jimmy Chérizier disse à imprensa que estava pronto para iniciar uma “guerra civil”, ou até mesmo um “genocídio”, se Ariel Henry não deixasse o cargo. Na quinta-feira, 7 de março, a empresa Caribbean Post Service foi saqueada. 15.000 pessoas fugiram da capital durante esses eventos. Ariel Henry finalmente renunciou em 12 de março, mas “o homem conhecido como Barbecue” declarou no mesmo dia que estava se preparando para lutar, de armas na mão, contra a chegada de qualquer força internacional.
As autoridades ficaram sobrecarregadas com essa febre destrutiva. Na sexta-feira, 1º de março, o primeiro-ministro estava em Nairóbi, onde assinou um acordo com as autoridades sancionando o envio de centenas de policiais quenianos para o Haiti, sob a proteção da ONU. Na ausência do primeiro-ministro, o ministro das Finanças declarou estado de emergência e toque de recolher no domingo, 3 de março. A polícia, mal equipada, relatou que estava impotente. Na quinta-feira, 7 de março, o jornal oficial, Le Moniteur, publicou um decreto prorrogando o estado de emergência por um mês, com pouco efeito.
A comunidade internacional manteve-se distante. O Secretário-Geral da ONU, Antonio Guterres, apoiado pelas autoridades da República Dominicana, tentou, em julho de 2023, alertar e mobilizar a organização sobre esse possível cenário. Mas foi somente na primeira semana de março de 2024 que o Conselho de Segurança, que estava reconhecidamente preocupado com outras prioridades, debateu a situação do Haiti a portas fechadas. A República Dominicana fechou militarmente sua fronteira com o Haiti. O país se recusou a permitir que o avião de Ariel Henry aterrissasse em Santo Domingo. Em 2023, os Estados Unidos incentivaram o Quênia a enviar várias centenas de policiais para garantir um policiamento mínimo em Porto Príncipe.
A deterioração da situação levou-os a exigir que Ariel Henry anunciasse sua retirada e organizasse eleições. Eles o colocaram em San Juan, Porto Rico, “sob a proteção” do FBI. Os outros membros permanentes do Conselho de Segurança, incluindo a antiga potência colonial da França, deixaram o “schmilblick” nas mãos dos Estados Unidos. O Brasil, o Canadá, os Estados Unidos, a França, o México, a CARICOM e a ONU participaram de uma cúpula de chefes de estado da CARICOM na Jamaica em 12 de março. O Secretário de Estado dos EUA estava sentado à direita do atual Presidente da organização caribenha.
De Porto Rico, um território associado aos Estados Unidos, o autonomeado primeiro-ministro interino, Ariel Henry, anunciou sua renúncia. Um Conselho Presidencial provisório, cuja composição e modo de operação foram montados às pressas, foi estabelecido em Kingston. Uma Missão Internacional de Segurança foi formalizada. Mas o Quênia, o país central, não está mais de acordo e está atento e preocupado com a situação. O país divulgou que está retirando a participação de seus policiais dessa força, tendo em vista a situação.
Esse desastre era previsível. Desde 2021, o Haiti tem sido administrado por “autoridades” não eleitas. As últimas eleições foram realizadas em 2016. O primeiro-ministro Ariel Henry foi nomeado para o cargo pelo presidente Jovenel Moïse, três dias antes de ser assassinado. Após negociações com uma série de partidos políticos em 21 de dezembro de 2022, seu mandato interino foi prorrogado até 7 de fevereiro de 2024. Mas Ariel Henry pretendia permanecer no poder e adiou as eleições presidenciais e parlamentares para 2025.
O Estado e a sociedade foram gangrenados por milícias delinquentes desde a ditadura de Duvalier, François e Jean-Claude, e o mandato de Jean-Bertrand Aristide. Os políticos que estavam brincando com fogo recorreram a elas. Com o passar dos anos, esses grupos se tornaram mais fortes, tanto em termos numéricos quanto territoriais. Essa integração da delinquência na vida política não foi sem custos. Sobrepujando presidentes, governo e polícia, ela levou o país ao caos. Tanto mais que as crises haitianas têm sido minimamente gerenciadas pela comunidade internacional. A ONU lançou um apelo a seus membros, lembrando-os de seu compromisso de dotar o fundo especial para o Haiti com um valor teórico de US$ 674 milhões. Apenas 2,5% desse montante havia sido honrado antes dos últimos acontecimentos. Os Estados Unidos e a República Dominicana, e em menor escala o Canadá, são os países da linha de frente da migração, praticando a contenção preventiva, em cada crise haitiana desencadeando ondas de partidas para Santo Domingo e Flórida. A proposta ridícula de enviar policiais quenianos, que usam métodos criticados em casa e não falam nem crioulo nem francês, faz parte dessa abordagem de responsabilidade limitada.
Em Kingston, em 12 de março, o Canadá e os Estados Unidos forneceram o financiamento necessário para o envio imediato de policiais quenianos. Tudo o que resta é convencer as autoridades em Nairóbi. O bem-informado presidente salvadorenho Nayib Bukele, especialista em policiamento duro, ofereceu os serviços de seus soldados, por precaução, e com a condição de que a ONU pague a conta…
Como resultado, de acordo com a ONU, metade da população está sofrendo de desnutrição. A cólera reapareceu. O agitador e ex-chefe de polícia Guy Philippe, que foi expulso dos Estados Unidos depois de cumprir uma pena de prisão por tráfico de drogas, está conduzindo uma campanha de desestabilização paralela à do chamado “Barbecue”. 80% da capital, bem como todas as estradas de acesso, encontra-se hoje controlada pelas “gangues”, que são praticamente livres para cobrar pedágios para entrar e sair de Porto Príncipe e sequestrar quem quiserem para pedir resgate. De acordo com um relatório publicado em 2022 pela ONG “Iniciativa Global contra o Crime Organizado”, havia 200 gangues criminosas, 95 delas na capital. Desde janeiro de 2024, mais de duas mil pessoas foram assassinadas. De acordo com o OMI (Office des Migrations Internationales), 362.000 haitianos estão deslocados em seu próprio país.
Em 7 de abril, os haitianos comemoraram a morte de Toussaint-Louverture, o precursor de sua independência, no Forte de Joux, no Jura francês, em 7 de abril de 1803, quando ele então foi feito prisioneiro por Bonaparte. Para aqueles que fizeram essa viagem comemorativa à França, tinham algo a comentar além da perpetuação de um passado já trágico?
NOTAS
[1] Texto originalmente publicado em francês, em 16 de março de 2024, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: Haïti, 2024 : un peuple victime d’indifférences policières. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/118845. Tradução de Andrei Cezar da Silva, Thaisa Pinheiro Carvalho e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.