Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A crise da comunicação na era da informação

Fascínio e medo se misturam quando se nota como as fronteiras entre o humano e a tecnologia se encontram cada vez mais diluídas, considerando o acelerado desenvolvimento da comunicação em escala global. Ao mesmo tempo em que se observa a ampliação das oportunidades de contato entre as pessoas, nem sempre a realização presencial da interação se confirma. Assusta o abastecimento da autossuficiência virtual como cultura dos “novos tempos”. Se, por um lado – justiça seja feita –, muitas relações de hoje nasceram no ambiente virtual e prosperaram, convém também atestar a existência de uma parcela representativa de interações que permanece encapsulada no ambiente digital. Também chama a atenção a performance dos dispositivos linguísticos, que promovem, mas também atrapalham, a subjetividade humana à luz do código tecnológico vigente.

O poeta JoãoZinho da Vila, em seu livro Meu masculino é feminino (2014), traz luz interessante sobre os mecanismos computacionais que interferem incisivamente no desenvolvimento das relações sociais e, em particular, nos fenômenos de simbolização, incluindo também os mecanismos de transmissão dos conteúdos. No poema “Lágrimas cibernéticas”, a voz poética de JoãoZinho da Vila problematiza: “Minhas lágrimas escorrem/sobre um teclado/que não consegue digitar:/sauddddaaadeeessSSSSSSSS…” Mesmo que o computador seja especialista em inteligência, a nossa especialidade, sua competência se encerra na composição de uma inteligência artificial, sem materialidade, sem peso, sem odores, sem carne, sem sentimentos; enfim, desumana. O poeta suspeita, com razão, do fetiche tecnológico que promete embalar, sem desconforto algum, as relações humanas. É ledo engano aceitar que tudo o que estiver envolvido em uma aura de tecnologia pode ser considerado de qualidade positiva. O parâmetro exitoso se encontra muito mais presente no uso humano da máquina, considerando os vícios e as virtudes desta relação, à luz da ética fundamental.

Ressalta JoãoZinho da Vila a existência de uma limitação da máquina em dar vazão aos sentimentos, sendo que estes só podem ser promovidos pela proximidade presencial entre os corpos. Existe, assim, um hiato entre o que é sentido humanamente e o que é expressado computacionalmente, lacuna esta que a tecnologia sozinha não consegue preencher. Precisa-se de empenho “humano demasiadamente humano” para deixar fluir a sensibilidade subjetiva, independentemente do imperativo tecnológico em questão. Se de um lado, “as flores de plástico não morrem”; do outro, “o pulso ainda pulsa”, conforme expressam as canções Flores e O pulso, gravadas pelo grupo Titãs em 1989.

O sujeito em corpo de objeto

Face ao exposto, desenvolveu-se tecnologicamente a “sociedade da informação”, mas há muito o que trilhar em matéria de “sociedade da comunicação”. Nesse sentido, explica Bernard Miège em O pensamento comunicacional (2000) que a substituição do “valor-trabalho” pelo “valor-saber” não se deu por completo, mesmo diante do contexto pós-industrial. Os serviços de comunicação ainda se desenvolvem dependentes das atividades industriais. Entre as seis primeiras marcas do planeta, segundo o ranking divulgado pela Interbrand em 2014, quatro pertencem à área de tecnologia da informação: Apple (1ª), Google (2ª), IBM (4ª) e Microsoft (5ª). A industrialização, ao longo dos tempos, priorizou o útil sobre o inútil como valor absoluto. Com isso, a comunicação foi empobrecendo poeticamente e enriquecendo pragmaticamente. Não à toa o saudoso poeta Manoel de Barros (1916-2014) destacava a importância dos “inutensílios” para o desfrute da vida em sua fruição mais plena de sentidos: “Nasci para administrar o à toa/o em vão/o inútil./Pertenço de fazer imagens./Opero por semelhanças./Retiro semelhanças de pessoas com árvores/de pessoas com rãs/de pessoas com pedras/etc. etc./Retiro semelhanças de árvores comigo./Não tenho habilidade pra clarezas./Preciso de obter sabedoria vegetal./(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade/uma rã no talo)./E quando esteja apropriado para pedra, terei/também sabedoria mineral”.

Sem poética, a comunicação perde o fio da meada chamada razão com sensibilidade. A humanidade gerou a tecnologia para gozar a vida em abundância. O lado nefasto do desenvolvimento técnico ocorre quando ele corporifica o congelamento dos afetos, via robotização do ser. Terceirizar a interioridade humana, entregando-a ao comando automático em destaque nas máquinas, significa arcar com um sério risco alienador. A respeito, já salientava a escritora e jornalista Clarice Lispector (1920-1977), na crônica “Cérebro eletrônico: o que sei é que é tão pouco” (Jornal do Brasil, em 13/07/1968): “A sensação é de apoio para o homem. Compensação do erro. Há a possibilidade de você lidar com uma máquina e seus sensores como a gente gostaria de lidar com o nosso cérebro (e nossos sensores), fora da gente mesmo e numa função perfeita.”

A cibernética vestiu o sujeito em corpo de objeto. Etimologicamente, objeto – do latim objectum, algo lançado à nossa frente – significa a predominância da coisa sobre o sujeito. Contraposto ou radicalmente separado do sujeito, a ciência determinista e sua rede tecnológica materializaram a ideologia do objeto existente em si, fora do eu, distinto de mim e dotado de autossuficiência. O resultado deste imbróglio pode ser acompanhado pela irreverência crítica presente em outro poema de JoãoZinho da Vila, intitulado “Memória”: “Deletei todas/as fotos da minha/memória,/apaguei a/emoção do/meu computador,/para não sentir/mais dor, processei meu/coração/e esfaqueei o/meu HD./O sangue escorreu/pelos labirintos/do meu vazio./Meu computador/chorou muito,/mas no dia/seguinte ele/percebeu que é/apenas uma máquina/e as máquinas não amam”. Este poema traz também à baila a razão sensível que promove o ser humano em suas possibilidades interativas, portanto, nos jogos de linguagem que a partir daí se desenvolvem.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários