Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A agonia de `João Paulo
Superstar` e o êxtase da mídia

‘O papa João Paulo II’, opinou o New York Times em editorial, no domingo, ‘foi um homem que usou os instrumentos da modernidade para lutar contra o mundo moderno e tirou partido de todos os meios de comunicação para propagar a sua mensagem’. E como!


Não espanta que outros também tenham ressaltado esse aparente parodoxo. Para ficar na imprensa brasileira, tem-se os artigos ‘Lutando no futuro com as armas do passado’, do vaticanólogo italiano Sandro Magister, transcrito no O Estado de S.Paulo de segunda-feira, e ‘Um papa da era do espetáculo’, do colunista Marcelo Coelho, da Folha de S.Paulo, no mesmo dia [leia as íntegras na seção Entre Aspas, nesta edição].


A rigor, antecede a Karol Wojtyla a midiatização do papado para propagar a mensagem da Igreja, fazendo do Pontífice uma celebridade e construíndo os eventos públicos por ele estrelados com o material das pulsões teatrais da TV, a fim de que os espetáculos que ela considera terem valor de notícia fossem um permanente sucesso de público.


Na noite da Sexta-Feira Santa de 1966, vendo Paulo VI cruzar em carro aberto as ruas de Roma, rumo ao Coliseu onde celebraria missa, este jornalista ouviu de um colega italiano o comentário depreciativo de que o ritual tinha se convertido ‘in uno spetacolo per le mass media‘.


Mas, por esse critério, o ascético, glacial e aristocrático Paulo VI foi um completo fracasso, o ator errado no papel errado. O oposto, em tudo e por tudo, seria João Paulo II, o ex-operário polonês que flertara com o teatro, jogara futebol, foi sagrado depois da morte súbita do recém-ungido João Paulo I, levou um tiro, visitou na prisão o atirador, andou pelos quatro cantos do mundo e ocupou o trono de Pedro durante um quarto de século.


Karol Wojtyla era um ‘natural’, como os americanos adjetivam os atletas e artistas que não precisam que se lhes ensine a fazer o que fazem tão bem, espontaneamente.


‘João Paulo Superstar’, como a ele se referiu o não tanto mas também célebre teólogo dissidente Hans Küng, em recente artigo na revista alemã Der Spiegel, foi um poderoso contraponto ao noticiário recorrente sobre a Europa pós-religiosa, a ascensão global do islamismo, a crise dos valores tradicionais da fé católica em matéria de costumes e ainda aos escândalos sexuais estarrecedores na hierarquia clerical.


Nem a mídia, nem a Santa Sé poderiam ter querido um papa melhor para as suas conveniências comuns. Outros o paramentavam para as suas incansáveis peregrinações e aparições – que, em vez de se desgastarem como notícia, pela repetição, não perdiam o viço. Cada vez que ele se ajoelhava para beijar o chão do país onde acabara de desembarcar, mais a mídia lançava os seus holofotes sobre esse bordão visual – e mais a platéia global se comovia.


No banco de trás, o cinegrafista


Mas João Paulo foi o seu próprio coreógrafo e o seu próprio diretor de cena. À medida que envelhecia sofrendo, mais fazia lembrar o poeta de Fernando Pessoa, aquele que ‘finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente’. Tão cedo os cardeais e os produtores de TV não terão outro assim.


O pontífice-notícia por excelência, que se diria nascido para os reality shows da civilização da imagem que ele fustigava, juntamente com o comunismo ateu e o consumismo hedonista, excedeu-se a si mesmo – ou fizeram com que se excedesse a si mesmo – nos seus dias derradeiros. E a mídia, regalada, respondeu como se esperava, cumprindo rigorosamente a sua parte no script.


Há uma foto – tinha de ser uma foto – que diz tudo da onipresença do aparato midiático do Vaticano, numa operação comensurável com o agravamento da saúde de Wojtyla. A foto mostra-o no banco dianteiro do carro que o levava de volta, pela última vez, da clínica romana onde se submetera a uma traqueostomia. No banco de trás, câmara na mão, o cinegrafista oficial da Santa Madre.


E há a foto chocante da sua face contorcida, os olhos apertados, a boca escancarada para uma fala impossível, na janela dos seus aposentos no Palácio Apostólico, três dias antes da morte – sintomaticamente, a capa da Veja desta semana.


João Paulo II deu à mídia oportunidades literalmente inumeráveis de registrar os seus padecimentos físicos e os seus tormentos íntimos, descortinados à curiosidade do mundo. Promoveu o fotojornalismo a arte religiosa renascentista, oferecendo às câmaras a luz, o volume e o movimento de suas vestes resplandecentes, em contraste com a sua expressão contrita ou torturada e – na celebérrima foto de Gabriel Bouys, da France-Presse, na Eslovênia, em 1999, com as cãs fustigadas pela ventania, os olhos fechados em oração ou para proteção, o punho esquerdo segurando firme o seu cajado de pastor com a imagem esculpida do Crucificado.


[Foi a foto que o diário La Stampa, de Turim, abriu em seis das sete colunas e em quase toda a altura de sua primeira página de sábado, ao lado de uma única matéria, ‘O homem que desafiou a história’. Sobre a imagem, as escassas palavras que resolveram à perfeição o problema de todos os editores que precisavam fechar a edição de domingo sem saber se o seu principal protagonista ainda estaria vivo quando o jornal batesse nas bancas: ‘Giovanni Paolo II (e, abaixo) 1978-2005’. Note–se a sutileza: ‘1978’, quando assumiu, e não 1920, quando nasceu.]


‘Exposição passou dos limites’


Na grande imprensa brasileira, embora a Folha de S.Paulo incluísse no seu caderno especial ‘João Paulo 2º’ a matéria ‘Papa usou internet e engajou Vaticano na mídia moderna’, do jornalista e professor Paulo Daniel Farah, e registrasse em editorial que Wojtyla foi ‘um papa midiático – característica que preservou mesmo nos momentos em que se viu enfraquecido pela doença’, apenas O Globo prestou o serviço jornalístico de dar espaço, já no sábado, à necessária discussão crítica dessa preservação.


Sob o antetítulo ‘Vaticanista e religioso acham que exibição da doença de João Paulo II passou dos limites’ e o título de fora a fora ‘Exposição pública de sofrimento gera polêmica’, a colaboradora Gina de Azevedo Marques, de Roma, lembra como, desde o início, o papa ‘havia optado expor-se de corpo e alma para a mídia’. Até aí, sugere o texto, tudo bem.


Mal é o que se viu nos dias finais, opina, porém, o estudioso Giancarlo Zizola, identificado como autor de mais de dez livros sobre temas católicos. Para ele, a exibição de sofrimento que considera sempre obscena representa um artifício político ‘para mascarar uma grave crise institucional dentro da Igreja’.


O entrevistado se diz convencido de que não foi o papa quem quis aparecer assim, mas a sua corte polonesa ‘que não quer largar o osso’. Arremata: ‘Esta é uma crise de jogos de poder em cima do corpo de um pobre homem’.


Contra a posição oficial reiterada pelo porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro-Valls, de que o papa continuou genuinamente querendo se comunicar com os fiéis e também chamar a atenção para o problema dos idosos, a repórter cita outro prelado, Vicenzo Marras, diretor da revista Jesus.


‘O problema’, especificou, ‘é transformar em espetáculo um momento da vida privada (do papa) tão íntimo como a doença’. Ele poupa a mídia (‘os jornalistas fazem o trabalho deles’), mas não ‘os que estão em torno do papa’ e que não tiveram a preocupação de ‘dosar com mais equilíbrio sua exposição pública’.


A decisão da entourage


À parte o fato de que há maneiras e maneiras de os jornalistas fazerem o trabalho deles e à parte também o fato de que o espetáculo levado ao mundo pela mídia mostrou quase tudo, mas escondeu o essencial – a verdade sobre o estado clínico do papa –, a decisão da entourage vaticana talvez não se explique nem só pelos ‘jogos de poder’ mencionados por Giancarlo Zizola, nem só pela falta de preocupação com a dosagem de que fala o padre Marras.


Uma coisa de cada vez.


Sobre o trabalho jornalístico. Estado, Globo e Folha produziram no domingo o aluvião previsível nessas ocasiões, com um total de 60 páginas de ‘tudo sobre’, em três cadernos especiais, bem-feitos, no todo. (Embora pudessem ser igualmente bem-feitos a partir de uma abordagem mais próxima do secularismo do que da reverência religiosa.) A cobertura por saturação continua.


O caderno do Estadão foi o maior (24 páginas), o mais substancioso – e o único a apresentar um ‘ataque’ ao papa: a transcrição do citado artigo de Hans Küng, confrontado com um de ‘defesa’, de autoria de um professor da PUC paulista.


O da Folha foi o único a trazer uma linha do tempo na dupla central, mostrando o que de mais importante aconteceu no globo, ano a ano, do início ao fim do pontificado de Wojtyla – ajudando o leitor a entender o mundo que ele ajudou a mudar.


Mas o que chamou a atenção deste leitor, mais do que qualquer outro texto, imagem e layout, como expressão da convergência das concepções dos que conduzem o Ufficcio Stampa da Santa Sé com as realizações da mídia, foram as manchetonas do Estado no fim da semana. Sábado: ‘‘Ele já vê e toca o Senhor’’. Domingo: ‘Morre João Paulo II após longo martírio’.


Na contramão da mídia que conta


A primeira, apesar das aspas (a frase é do cardeal Camillo Ruini, vigário de Roma) faz par com a do Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, no dia seguinte: ‘O Senhor chamou a Si o Santo Padre João Paulo II’.


O título do Estado – beato, místico, piegas, poético, o que se queira – ficou na contramão da objetividade informativa dos demais jornais que contam, no Brasil e no exterior, como um rápido giro pela web permitiu ver.


O Globo, por exemplo, fechou o foco no doente: ‘Estado do Papa é irreversível’. O New York Times, abriu-se para os católicos: ‘Enquanto a sua igreja ora, papa enfraquecido aproxima-se da morte’. O Guardian, de Londres, abriu-se para o mundo: ‘Fim de era momentosa enquanto o papa desliza para a morte’ (soa melhor em inglês). E o La Stampa, como já se descreveu, levou a palma.


O ‘martírio’ do Estadão de domingo também foi uma exceção. O Observer londrino e o Figaro parisiense imitaram o jornal turinês na foto e na brevidade: ‘O adeus final’, no primeiro caso; ‘O fim de João Paulo II’, no outro. O Globo, na mesma linha de concisão, cometeu porém um paupérrimo jogo de palavras: ‘Adeus, João de Deus’. A Folha foi cavalarmente factual: ‘Morre João Paulo 2°’. O El País foi eloquente, retratando o clima na Praça São Pedro: ‘O papa morre envolvido (arropado, no original) por milhares de fiéis’.


O New York Times, sob a manchete geral ‘Papa João Paulo II morre aos 84’, compactou em duas submanchetes cinco informações essenciais: ‘Em reinado de 26 anos, transformou Igreja e papado’ e ‘Papa sucumbe a doença sofrida longamente e em público’.


Karol Wojtyla teria sofrido o ‘martírio’ do Estado se tivesse enfrentado ‘tormentos, torturas, ou a morte, por sustentar a fé cristã’, ou ‘por causa de suas crenças ou opiniões’, ensina o Aurélio.


Como, afinal, ele morreu de velhice (infecção generalizada e colapso cardiovascular), a manchete não sobrevive nem como metáfora. Por transbordamento religioso, ou para agradar a massa de leitores católicos, os autores dos títulos que destoaram do conjunto da imprensa perderam uma boa oportunidade de afirmar a separação entre Igreja e Estado.


‘Modelo monárquico’ ou estratégia de mídia?


Sobre o exibido e o omitido. De novo O Globo deu uma dentro com a solitária iniciativa de transcrever no sábado um artigo da correspondente em Roma do Newsday, de Long Island, NY, Carol Eisenberg, sobre o ‘véu de silêncio’ que dificultou a cobertura da saúde do papa. Ela chamou a atenção para a ‘assombrosa tarefa de conseguir até pequenas informações’ sobre o assunto de um Vaticano ‘que até hoje não confirmou oficialmente que o papa sofre do mal de Parkinson’, como escreveu na quinta-feira.


Carol atribui a reticência da Santa Sé ao seu ‘modelo monárquico’. Nessa interpretação, apenas o papa e ninguém mais teria o poder de definir os padrões de relacionamento do Vaticano com a mídia. O que faz perguntar – sabendo que ninguém responderá – se foi o próprio papa quem decidiu aparecer na janela do seu apartamento para ser fotografado em sofrimento. Ou se foi ele quem, antes, resolveu ter a companhia de um cinegrafista no carro que o transportou da Clínica Gemelli ao Palácio Apostólico.


Sobre a estratégia de mídia do Vaticano. O papabile Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo, disse na sexta-feira: ‘Como bom pastor que dá a sua vida às suas ovelhas, ele está dando um grande exemplo final sobre o sentido do sofrimento, da doença e da morte’.


A chave dessa mensagem implícita sobre a grandeza moral incomparável da missão da Igreja no mundo está no ‘bom pastor que dá a sua vida…’. Sem a participação inescapável da mídia, o exemplo de sacrifício do bom pastor – a analogia com Cristo na cruz é imediata – não teria a mesma desejada reverberação.


E essa reverberação se tornou especialmente necessária para a Igreja propagar a sua doutrina sobre ‘a boa morte’, tendo em vista o impacto uma questão de momento amplamente divulgada.


A autora irlandesa Mary Kenny, escrevendo sábado no Times de Londres sobre ‘o último presente de João Paulo’ (compartilhar com o mundo as suas últimas horas) foi ao ponto que interessa ao catolicismo regressivo da igreja de Wojtyla.


Primeiro ela disse que ‘as últimas aparições do Santo Padre no balcão do Vaticano foram uma metáfora visual do seu Calvário’ (maiúscula no original). Depois, que ‘as horas finais do papa não foram isentas de dor, mas foram dignas’. Isso para emendar:




‘O caso de Terri Schiavo, cuja vida foi há pouco terminada na Flórida, é, por contraste, um exemplo de morte sem dignidade. Ela morreu porque foi levada à inanição e ao ressecamento mortais pela decisão de seu marido, apoiada por uma decisão legal.’


Exame de consciência


Todas as religiões, no limite, querem controlar a vida e a morte dos seus adeptos. A essência do pontificado de João Paulo II foi querer devolver esse controle à tradição católica ultramontana de que se fez porta-voz, em um mundo que ela hostiliza para recuperar a influência perdida com a passagem do tempo e a mudança das mentalidades.


Daí a execração da pílula, do aborto, da camisinha, do homossexualismo, da ordenação de mulheres sacerdotes e do fim do celibato clerical.


Um objetivo do porte dessa recuperação, diante de um rebanho de 1 bilhão de almas, perdoe-se o clichê, não poderia de forma alguma dispensar os ‘instrumentos da modernidade’ referidos no editorial do New York Times.


Nas democracias, a instituição religiosa católica, como qualquer outra, decerto tem o direito de escolher os meios mais adequados aos fins que se fixou para si. Mesmo no maior país católico do mundo, porém, o instrumento da modernidade que a mídia se orgulha de ser parece longe de se interrogar sobre os limites que deveriam separar os critérios éticos da profissão dos interesses da fé, seja ela qual for, e até da tendência ‘natural’ a comungar com o sentimento popular.


Esse exame de consciência é tão mais urgente quanto mais se reconhece que os interessados se aproveitam da mesmíssima cultura do espetáculo que condenam nos seus sermões – vale dizer, da mídia – para avivar as emoções coletivas e canalizá-las para a intolerância à liberdade de escolha de crentes e não-crentes nas suas vidas particulares.


Os jornalistas brasileiros podiam também parar para pensar no que disse o arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eusébio Scheid, quando, ao embarcar para Roma, na segunda-feira, observou que uma ‘porção de desafios’ esperam o sucessor de João Paulo II. Perguntado sobre quais seriam, mencionou apenas um.  “O papa tem de ser um homem da mídia’, respondeu. ‘Não vai sem mídia.’


[Texto fechado às 19h30 de 4/4]