Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sofrimento de um
e a chacina de 30

Ao fechar a sua primeira página da edição de sábado, os três jornalões brasileiros decidiram – como que de comum acordo – que a agonia do papa era ‘mais manchete’ que a chacina sem igual na Baixada Fluminense, com seus 30 mortos a esmo.


No Estado não deve ter havido a menor hesitação, tanto que o assassínio em massa não só ficou abaixo do texto e foto que se seguiam ao ‘‘Ele já vê e toca o Senhor’’, como mereceu apenas um tituleto de três colunas e uma foteca de 7 x 9 cm do enterro de algumas das vítimas – quase 10 vezes menor do que dos fiéis em vigília na Praça de São Pedro.


O Globo, presumivelmente depois de quebrar a cabeça, dividiu a página em duas: a metade de cima para o papa, a de baixo para a matança. Mas só ao desdobrar a página deu para ver que os editores quiseram equilibrar as duas notícias. A do papa mereceu uma linha de título; a da chacina, duas, da mesma fonte e tamanho. E a foto da vigília saiu menor, em altura e largura, do que a da família de uma das vítimas, em pranto numa calçada de Nova Iguaçu.


Mas a Folha resolveu o problema melhor, dividindo a página de tal modo que a manchete ‘Massacre no Rio…’ ficou acima da dobra e em corpo maior do que a primeira, ‘João Paulo 2º piora e perde a consciência’. E a foto de três mortos em um lava-rápido do município de Queimados saiu bem maior e incomparavelmente mais forte do que a da reza em Roma.


(A Folha, por sinal, conseguiu errar nos dois títulos. Como o jornal registraria no dia seguinte, o papa ainda não havia perdido a consciência na noite de sexta-feira. E como observou o seu colunista Janio de Freitas, o massacre não foi na cidade do Rio, o que a manchete indicava, mas na Baixada.)


O global e o local


Atribui-se ao administrador de empresas americano Thomas Lee a paternidade da expressão ‘pense globalmente, aja localmente’. Por esse critério, pelo menos o carioca O Globo – sem trocadilho – deveria ter promovido a barbaridade ‘local’ ao topo da página, ou dele desalojando o pontífice desenganado mas ainda vivo, ou encontrando uma fórmula de fazer coabitar ali as duas tragédias.


O resultado passa a impressão de que faltou coragem de afrontar o rolo compromessor midiático do estado de saúde do papa. A menos que se sustente o ponto de vista – que este leitor considera mais do que discutível – de que o agravamento da enfermidade de João Paulo II, que não foi súbito nem surpreendente, era uma informação mais quente e mais nova para um leitor brasileiro do que a execução de 30 inocentes em duas cidades do estado do Rio de Janeiro por ‘policiais’, como título e chamada não deixavam dúvidas.


O próprio Globo, abaixo da chamada, informou que o assunto já estava nas edições eletrônicas da mídia mundial – ‘do americano ‘New York Times’ à emissora árabe ‘Al-Jazeera’, passando pelos principais veículos europeus’.


Para a memória do jornalismo: na noite de 23 de novembro de 1961, o secretário de Redação do Estado, Cláudio Abramo, enfrentou um problema parecido. Horas antes, o Brasil reatou as relações diplomáticas que tinha rompido em 1948 com a União Soviética, e um jato comercial inglês Comet 4, da Aerolineas Argentinas, se estatelou ao levantar vôo do aeroporto de Viracopos, matando todos os seus 40 passageiros e 12 tripulantes.


Ele resolveu o impasse, salomonicamente, com duas manchetes, uma acima da outra: ‘Comet cai em Campinas’ (uma brilhante aliteração) e ‘Brasil e URSS reatam relações’. O texto da primeira notícia corria por toda a oitava e última coluna da página; o da segunda, por toda a primeira coluna. Cláudio ainda justificou a decisão com o costumeiro sarcasmo a que recorria para conviver com as posições políticas da Casa, antagônicas à suas: ‘Afinal, não foram duas tragédias?’


[Texto fechado às 19h30 de 4/4]