Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa obstruída, as receitas de bolo e um ananás no meio do caminho

(Foto: Reprodução – Facebook)

Publicado originalmente no site objETHOS

“Se isso não for obstrução de justiça, o que será?”, perguntou Bernardo Mello Franco, em seu blog em O Globo, no mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro afirmou, diante de um bando de jornalistas, ter se apropriado das gravações feitas na portaria de seu condomínio, horas antes da execução de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. O crime acaba de completar 600 dias.

Foi uma voz praticamente isolada entre os que permanecem atuando na grande imprensa. Diante do escândalo evidente, os jornais silenciaram.

A história começou, como se sabe, quando o Jornal Nacional, da Rede Globo, anunciou em destaque, na edição de 29 de outubro, a hipótese de Bolsonaro ser incluído na lenta e conturbada investigação do assassinato. Os indícios seriam uma anotação no livro de registros da portaria do condomínio onde mora o presidente e o depoimento de um porteiro, que declarou ter falado com “seu Jair” para autorizar a entrada de um visitante, hoje preso, que afinal se dirigiria a outra casa, para encontrar-se com outro morador, também preso. A reportagem, entretanto, ressaltava que, naquele dia, Bolsonaro, então deputado federal, estava em Brasília, participando de sessões na Câmara.

À violenta reação do presidente, que estava na Arábia Saudita e de lá gravou uma “live” xingando a Globo e ameaçando não lhe renovar a concessão, seguiu-se uma coletiva convocada às pressas pelo Ministério Público do Rio, que afirmou ter realizado perícia nas gravações e desmentiu a versão do porteiro. Apenas no dia seguinte, com base numa extensa reportagem da Folha de S.Paulo, o Jornal Nacional exibiu as falhas da perícia, feita em apenas duas horas e meia, por técnicos do próprio MP, a partir de um CD fornecido pelo síndico do condomínio, portanto sem o exame dos equipamentos do sistema eletrônico da portaria. Na edição de 1º de novembro, ao noticiar o afastamento de uma das promotoras, que aparecia em fotos com a camisa de campanha de Bolsonaro e ao lado do deputado que rasgou a placa de Marielle numa manifestação às vésperas da eleição do ano passado, o telejornal voltaria a questionar a perícia. Entretanto, no dia 2 de novembro, justamente quando o presidente afirmou que “pegou” as gravações, o JN já não daria qualquer destaque ao caso, registrando-o no rodapé de uma longa matéria em que Bolsonaro aparece descontraído, andando em sua moto nova, falando sobre as perspectivas da economia, até que finalmente se refere ao episódio do condomínio e diz: “Nós pegamos, antes que fosse adulterado, ou tentasse alguém adulterar, pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica, que é guardada há mais de ano, a voz não foi a minha, não é o ‘seu Jair’…”.

“Antes que fosse adulterado”. Terá sido?

Coube a um jornalista solitário, Hugo Souza, que mantém o blog Come Ananás, o empenho num trabalho de investigação que, em outros tempos, mobilizaria uma multidão de repórteres. Numa primeira matéria, publicada em 2 de novembro a partir do vídeo em que Carlos Bolsonaro procura comprovar a versão oficial – feito no dia seguinte à primeira reportagem do JN -, ele mostra indícios de que os arquivos das gravações podem ter sido alterados. No dia seguinte, reitera essa suspeita, ao verificar um segundo vídeo postado pelo filho do presidente:

“No segundo vídeo, pode-se ver na aba esquerda do Windows Explorer que surge uma pasta nomeada ‘GRAVAÇÕES’, abaixo do diretório ‘Rede’. A pasta, diferente da pasta ‘2018_03_14’, onde aparecem arquivados os áudios mostrados por Carlos, não estava lá no primeiro vídeo. O intervalo entre a publicação dos dois vídeos é de menos de três horas: o primeiro foi postado no Twitter às 10h42; o segundo foi postado às 13h26.”

Obstrução da justiça, vamos recordar, era uma obsessão da nossa imprensa quando o alvo era o PT. Foi sob essa acusação – improcedente, como assinalaria Janio de Freitas – que Lula foi impedido de assumir a Casa Civil, em março de 2016. Em 2017, a onda de reportagens sobre o famoso triplex do Guarujá também ensejou hipóteses de incriminar Lula por esse motivo. No mesmo ano, O Globo correria atrás de juristas e especialistas prontos para “enquadrar” Dilma Rousseff, já destituída do cargo, com base numa delação, que assanhou o colunista Merval Pereira a pedir a prisão da ex-presidente. A propósito, a resposta de Dilma, no mesmo dia, contestando a “escalada autoritária [que] contaminou radicalmente os formadores de opinião pública”, é premonitória: “Em outros tempos, em outros países, tais práticas resultaram na perseguição política e na destruição da democracia levando à escalada da violência e do fascismo.”

Agora que o fascismo avança, o presidente declara sem cerimônia o abuso que cometeu, debocha acintosamente da imprensa – “E aí, Globo, já acharam quem matou Marielle? Foi eu mesmo?” – e os jornais se calam.

Mesmo a Folha, que publicou um editorial vigoroso neste domingo, 3 de outubro, e foi às bancas com uma sobrecapa de fundo preto lamentando a “atitude discriminatória” de Bolsonaro, que “pediu o cancelamento das assinaturas” do jornal por parte de órgãos do governo federal: mesmo a Folha praticamente ignorou o assunto em sua edição, deixando-o restrito ao espaço de colunistas e, no site, a uma reportagem que deixa a cargo de associações de delegados de polícia o protesto contra o presidente.

Talvez se possa entender a fragilidade do mote, reiterado novamente desta vez, de que “defender a liberdade de imprensa é defender a democracia”, se considerarmos a questão econômica, que orienta as decisões editoriais: o principal negócio da empresa, em termos de rentabilidade, é o PagBank. Talvez não valha a pena desagradar o governo que já tantas ameaças vem fazendo, e correr o risco de perder uma carta-patente.

Mas então “defender a democracia” se torna, cada vez mais, apenas uma declaração retórica. Daí não adianta choramingar por novos assinantes.

E é assim que o tempo vai se fechando. Quando, na semana passada, e na esteira das manifestações no Chile contra o governo que era a menina dos olhos dos que atualmente mandam e desmandam no Brasil, Eduardo Bolsonaro declarou que, “se a esquerda radicalizasse”, haveria reação, que “poderia vir através de um novo AI-5”, o site humorístico Sensacionalista publicou uma receita de bolo. Era uma óbvia evocação dos tempos da ditadura, quando jornais e revistas, sob censura, utilizavam o estratagema para denunciar essa violência – com a diferença de que se tratava de receitas absurdas.

Obstruída a imprensa, acuada e acovardada, resta-nos a esperança de um ananás no meio do caminho. Até quando, eis a questão.

PS – Como de hábito, Bolsonaro voltou atrás em suas declarações. Como noticiou O Globo em matéria atualizada na manhã de segunda-feira, 4 de novembro, o presidente negou ter agido para obstruir as investigações do caso Marielle. O jornal reproduz trecho de entrevista ao programa Domingo Espetacular, da Record, que foi ao ar na noite do dia 3: “…também falam que estou obstruindo a Justiça. Que obstrução? Apenas eu falei com meu filho, ele foi na portaria, como qualquer um dos 150 moradores do condomínio pode fazer. Colocou a data 14 de março do ano passado, entrou nas ligações da minha casa e para a casa dele, ele botou o áudio e filmou esse áudio. Nada além disso.”

Mais tarde, na saída de um jogo de futebol no estádio do Gama, ele repetiu: “O que eu fiz [isto é, o que o filho Carlos fez…] foi filmar a secretária eletrônica com a respectiva voz de quem atendeu o telefone. Só isso, mais nada. Não peguei, não fiz backup, não fiz nada. A memória da secretária eletrônica está com a Polícia Civil há muito tempo. Ninguém quer adulterar nada.”

O caminho indicado pelo repórter Hugo Souza, como referido neste artigo, sugere entretanto outra hipótese, que precisaria ser investigada. Apenas uma perícia a sério poderia fazer isso.

A outra pergunta é: se a memória da secretária eletrônica está com a Polícia Civil “há muito tempo”, por que essa perícia rigorosa já não foi feita? Por que o MP teve de pedir uma perícia às pressas, cheia de buracos e, a rigor, imprestável, porque não examinou o material original, mas apenas um CD fornecido pelo síndico do condomínio?

Enfim, perguntas…

PS 2 – Na manhã desta segunda-feira, Monica Bergamo reproduz comunicado interno do diretor geral de jornalismo da Globo, Ali Kamel, no qual detalha os procedimentos adotados para a apuração da reportagem que detonou essa polêmica.

Kamel estranha que o advogado de Bolsonaro, entrevistado no mesmo dia, tenha sonegado as informações sobre os áudios que desmentiriam o depoimento do porteiro. A esse respeito, diz que “houve uma elucidativa entrevista das promotoras do caso, que divulgamos com o destaque merecido”. Ao mesmo tempo, assinala que “a perícia no sistema de interfone foi feita apenas um dia depois da exibição da reportagem e num procedimento que durou somente duas horas e meia, o que tem sido alvo de críticas de diversas associações de peritos”.

Como, então, a entrevista das promotoras pode ter sido elucidativa? O próprio JN, na edição de 1º de novembro, trouxe entrevista com o presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais, que questionou “a forma e a rapidez com que o trabalho foi concluído”.
A perícia do MP, em suma, tem o mesmo valor que o calendário da Caixa Econômica exibido por Sergio Moro como “prova” da data em que havia aberto conta no Twitter. Não é possível tomá-la a sério, e insistir nisso é condição fundamental para a apuração rigorosa desse crime.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora aposentada da UFF, pós-doutoranda na Universidade do Minho e pesquisadora do objETHOS.