“Eu vi um Brasil na tevê”! Esse trecho de uma composição de Chico Buarque e Roberto Menescal (Bye Bye Brasil) – realizada em 1979 sob encomenda para a película homônima de Cacá Diegues – revela muito do Brasil profundo dos tempos atuais: o Brasil fantasioso televisivo-midiático em contraponto à funesta realidade concreta. O filme de Diegues, por seu turno, foi realizado em 1980 e completa 40 anos; já o seu diretor acaba de fazer 80 anos. Expondo de forma breve, o filme retrata as mazelas de um país que vivia os estertores da ditadura civil-militar iniciada em 1964. Nos lugares mais recônditos do Brasil uma caravana de artistas mambembes usa o artifício de truques ou mágicas baratas para envolver pessoas simples e desassistidas pelo governo do general-presidente. A televisão ainda era uma novidade tecnológica para aquelas lonjuras territoriais onde a caravana se imiscuía, e os artistas mambembes vivenciavam igualmente os seus dramas existenciais tendo como cenário aquele Brasil pobre, desigual e crente no transcendente, algo inabalável nessas plagas.
Em 2020 envoltos numa pandemia que já ceifou a vida de, praticamente, 130 mil brasileiros e sob a égide de um governo negacionista, perverso, que flerta permanentemente com ideias fascistizantes, não seria exagero afirmarmos que retrocedemos muito como civilização. O bolsonarismo deixou de ser uma mera adesão às desataviadas ideias do capitão reformado do exército e passou a se configurar, semanticamente, como um estilo de vida, um modus operandi e modus faciendi que, além do negacionismo e anti-intelectualismo evidentes, denotam ainda a face nefanda de uma elite econômica conectada com o obscurantismo e tão-somente preocupada com a acumulação flexível (capital financeiro parasitário) em detrimento de investimentos sociais públicos robustos, esses últimos sim, garantidores do bem-estar da população mais vulnerável, sobretudo. Só nos cinco primeiros meses pandêmicos os super-ricos de nosso país acumularam mais de 34 bilhões de dólares! Em contrapartida, mais de 520 mil empresas de médio e pequeno porte (geradoras de empregos diretos) cerraram suas portas por ausência de créditos, segundo dados publicados pelo IBGE em junho. Alas extremistas e sádicas do bolsonarismo parecem se regozijar ainda com a exposição cruel e ilegal de uma criança violentada por um parente, além de defenderem táticas persecutórias e criminalizantes em relação aos servidores públicos, o que fere preceitos constitucionais e os direitos humanos.
Mas, de que maneira a mídia hegemônica, notadamente, vem reportando os temas que envolvem, mormente, o cenário econômico do país, ou melhor, como a mídia hegemônica vem respaldando a política ultraliberal de Guedes sem qualquer mediação ou problematização que valha? Recentemente, Salim Mattar (principal acionista da Localiza Hertz) pediu para sair da Secretaria da Desestatização e Privatização do governo Bolsonaro. Mattar deu longa entrevista ao noticiário da GloboNews, defendendo a necessária privatização do patrimônio público sem qualquer parcimônia, com um sorriso indisfarçável no canto dos lábios (talvez um cacoete), mas ao mesmo tempo descontente com a excessiva burocratização do país, que emperra as negociações da coisa pública. Mattar agradeceu a oportunidade de ter feito parte da equipe econômica de Guedes e de que teria aprendido muito no período que esteve à frente de uma secretaria que, a julgar pelo nome, joga firmemente contra um país que tanto necessita do Estado. Salim Mattar foi um dos maiores doadores individuais nas eleições de 2018 para candidatos de perfil privatizante ou apoiadores de Bolsonaro. E o que os jornalistas da Globonews perguntaram a Mattar? Nada além do retórico. As platitudes jornalísticas grassam, deliberadamente, nesse setor (econômico) como se isso não afetasse diretamente a vida dos/as brasileiros/as.
Segundo o que apurou o jornal Folha de S.Paulo em maio desse ano, Mattar teria recebido os lucros e dividendos da empresa Lozaliza Hertz, o que contraria a Lei do Servidor Público, pois isso geraria conflito de interesses. Mas, nada disso parece ser grave para um governo exposto em rede nacional (como não nos lembrarmos da famigerada reunião ministerial de 22 de abril), que procura agir sistematicamente de forma infralegal. Não há qualquer diferenciação entre o público e o privado, como é possível acompanharmos diariamente nos mais variados veículos de comunicação sobre o enriquecimento ilícito do clã Bolsonaro.
Logo, se a carcoma bolsonarista ultraliberal continuar agindo sem freios ou limites na direção econômica do país, os problemas sociais vão se tornar cada vez mais agudos. Taxam-se livros, mas não as grandes fortunas! E, já que trouxemos à baila um filme de Cacá Diegues como proêmio para esse comentário, o que dizer do abandono criminoso da Ancine, da Cinemateca e de tantos outros setores culturais fundamentais no Brasil? Um país de trevas é o que o bolsonarismo quer deixar como herança! Esse é o principal embate que os setores progressistas terão de enfrentar a partir de agora: a racionalidade bolsonarista ultrapassou o seu criador e ganhou muito terreno. Tal racionalidade e aparelhamento estão presentes na vida pública, nos ministérios e secretarias, nas escolas e universidades, nos grupos empresariais jornalísticos, nas igrejas, etc.
Por fim, a canção amargurada e em forma de crônica de Chico Buarque e Roberto Menescal acabam sendo visionárias: “A última ficha caiu” (será?), “Estou me sentindo tão só”, “O sol nunca mais vai se pôr” (até quando?).
Texto publicado originalmente em objETHOS.
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Jéferson Silveira Dantas é historiador, doutor pela UFSC, vinculado ao objETHOS.