Dizer que a internet e, principalmente, as plataformas de redes sociais impuseram uma grande transformação sobre o jornalismo é repetir o óbvio. Desde as lógicas e rotinas de produção, até a segurança física dos profissionais da mídia são permanentemente impactados pelas plataformas. Ao mesmo tempo em que elas oferecem espaço para diferentes pontos de vista, seus produtores estão vulneráveis a vários riscos online, segundo Peggy Hicks, diretora da divisão temática “Engagement, Special Procedures and Right to Development”, do Alto Comissariado para Direitos Humanos das Nações Unidas (OHCHR), no “Internet for Trust”, realizado pela Unesco em Paris entre 22 e 24 de fevereiro. O evento debateu a regulação das plataformas para combater notícias falsas, desinformação e o discurso de ódio online.
Durante os três dias, cerca de 4,5 mil pessoas entre representantes de governos e sociedade civil de diversos países, jornalistas, influenciadores e pesquisadores debateram o rascunho de uma proposta de regulação redigida pela Unesco, além de apontarem caminhos e questionamentos para a questão. A relação entre plataformas, desinformação, liberdade de expressão e jornalismo esteve em evidência, assim como o Brasil. Participaram do evento, a jornalista Patricia Campos Mello, o influenciador digital Felipe Neto, o diplomata Santiago Irazabal Mourão, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, e o chefe da área de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco, Guilherme Canela.
Recentemente, a maior democracia latino-americana foi alvo de atentados sistemáticos contra suas instituições por meio da internet, especialmente redes sociais, que culminaram na destruição parcial de prédios públicos, em Brasília. Por meio de uma carta lida na abertura do evento, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, lembrou do episódio e afirmou que o discurso de ódio vitimiza principalmente as pessoas mais vulneráveis da sociedade. Segundo ele, a regulação de plataformas precisa levar em consideração direitos humanos individuais e coletivos, bem como deveriam ser desenvolvidas de forma mais transparente e coletiva.
Em 2024, 19 países terão eleições presidenciais, pontua Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco. Em sua fala de abertura, ela reforçou a urgência de se desenvolver regulações às plataformas para evitar que os cidadãos desses locais sejam prejudicados pela desinformação que prolifera pelas redes sociais. Trata-se de um problema global que coloca a liberdade de expressão e os direitos humanos em risco. Um dos “desafios mais complexos e decisivos do nosso tempo”, segundo o site da Unesco.
Liberdade de expressão e ódio
As plataformas são negócios privados que vendem a ideia de uma comunicação sem barreiras, livre e pública, porém, quem dita tudo isso são aqueles que dominam os algoritmos. Como estabelecer limites sem impor censura, como fiscalizar, sem invadir, como proteger em um ambiente de anônimos? Estratégias de como solucionar estas questões foram o foco de três dias de debates. Resta saber como implementar de fato e garantir que direitos coletivos e individuais sejam respeitados.
A concentração de poder nas mãos de poucas gigantes da tecnologia é um ponto crucial que coloca em risco a liberdade de expressão, bem como vulnerabiliza os produtores e consumidores. Da mesma forma, a falta de responsabilização das empresas que mantém os conteúdos danosos também permite a disseminação de dados nocivos à reputação ou vida de pessoas e grupos. O debate sobre regulação de plataformas precisa ter como princípio básico os direitos humanos e prezar pela liberdade de expressão em suas diferentes dimensões.
Em vídeo para o canal do YouTube da Unesco, Guilherme Canela pontua que o debate sobre liberdade de expressão, muitas vezes, se restringe ao direto de expor ideias e pensamentos, porém, há outras duas dimensões essenciais: o direito a buscar informação e recebê-la. Se olharmos para o Brasil dos últimos quatro anos, além do cerceamento por meio de ações judiciais, intimidação, ataques online e presenciais, a falta de acesso a dados públicos era uma outra limitação enfrentada no país.
É inegável o papel desses ambientes para a sociedade, na difusão de diferentes pontos de vista, porém, a falta de transparência e responsabilização são alguns dos vários pontos críticos para a democracia mundial. O influencer brasileiro Felipe Neto pontuou esta questão com um exemplo prático: há 13 anos ele busca respostas sobre como é feito o sistema de recomendação do YouTube. Ele diz que escreveu, perguntou, estudou, mas nunca recebeu resposta formal de como funciona a arquitetura de recomendação de vídeos para os usuários. Na prática, as escolhas dos produtores são limitadas a algumas estratégias impostas pelas companhias desenvolvedores e podem mudar com uma nova linha de código.
Por isso, moderação de conteúdo não resolve, ponderou Maria Ressa, fundadora do site de notícias Rappler, na abertura do Internet for Trust. “Mentiras espalham mais rápido do que fatos”, destacou a jornalista filipina que foi perseguida politicamente, processada, presa e absolvida por acusações de evasão fiscal. Segundo ela, a lógica das plataformas recompensa a desinformação. É como dizer a uma criança, “minta e eu te recompensarei, continue mentindo e eu te recompensarei mais ainda”, exemplificou.
Ao longo dos últimos anos a jornalista filipina vem sendo alvo de uma série de campanhas de ódio online devido ao seu posicionamento opositor ao presidente Rodrigo Duterte, que assumiu o poder em 2016. Ela foi alvo de ameaças de morte, estupro, doxxing, racismo, misoginia e outros tipos de ataques por meio de memes e mensagens nas redes sociais. Ressa compartihou com a audiência algumas imagens que circularam na internet e buscavam minar sua imagem como mulher e calar sua voz como jornalista. São montagens absurdamente ofensivas tentando confundir a o semblante da mulher com animais e partes íntimas do aparelho genital masculino. Este é um exemplo das estratégias misóginas, de desuminazação e intimidatórias usadas pelos haters online, e que proliferam contra centenas de mulheres. A maioria se mantém anônimo e sai impune por falta de regulação e punição.
Difícil solução
Cerca de 60% dos ataques no Facebook e Twitter contra Ressa, entre 2016 e 2021, tinham como objetivo central minar sua credibilidade como jornalista, por meio de campanhas de desinformação que ligavam o trabalho da jornalista filipina com fake news. Esta análise foi divulgada pela pesquisa mundial “The Chilling: A Global Study On Online Violence Against Women Journalists”, conduzido pela Unesco e pelo International Center for Journalists (ICFJ).
“Isto não está acontecendo só comigo”, afirmou Maria Ressa no evento da Unesco. “Muitos outros, como eu, lutam diariamente para fazer o seu trabalho”. Segundo ela, violência online leva à violência física, outra constatação do estudo global sobre violência de gênero contra jornalistas. Cerca de 20% das mulheres vítimas de ataques online também sofreram agressões no mundo real.
A violência contra jornalistas, principalmente mulheres, é um problema crescente nas redes sociais e que precisa ser atacado com punição aos perpetradores, mas como resolver o problema? Para a Prêmio Nobel da Paz de 2021, somente tirar o conteúdo do ar não é suficiente. Ela ilustra com uma metáfora: Se você tem um rio poluído e tira um pedaço de vidro da água, lava e joga a água de volta, isso não é suficiente para resolver o problema da poluição. É preciso fechar a fábrica que polui.
Como responsabilizar e punir os mecanismos que permitem a circulação do discurso de ódio e desinformação online, garantindo os direitos humanos e a liberdade de expressão, é a grande questão que se buscou responder no evento, mas continua aberta. Jornalistas, ativistas, representantes de governos e entidades da sociedade civil são unânimes ao concordar com a necessidade de se ampliar o debate e basear a regulação das plataformas nos princípios universais dos direitos humanos. É um problema multifacetado que envolve variados atores, o qual afeta a prática jornalística em praticamente todas as suas dimensões.
Texto originalmente publicado por objETHOS
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Janara Nicoletti é Doutora em jornalismo e pesquisadora do objETHOS.