Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Do Brasil que exclui ao jornalismo que precisa (e deve) ser antirracista

(Paulo Pinto/Agência Brasil)

Por essa autora se tratar de uma pessoa branca, portanto beneficiada pelos privilégios de branquitude, inicio essa reflexão me colocando no texto e pedindo a devida licença para tratar do tema que me proponho a discutir aqui, por julgá-lo importante demais para passar despercebido nesse espaço: a necessidade de buscarmos uma maior diversidade profissional, notadamente de pessoas negras, com efetivas garantias de acesso e permanência, como meio para se alcançar um jornalismo mais fazedor de sentido para a sociedade plural em que vivemos.

2024 foi o primeiro ano em que 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, foi celebrado como feriado no Brasil. A data, que já era feriado em seis estados da Federação (nenhum deles no Sul) e em 1.260 municípios, só alçou a condição de ser incluída oficialmente no calendário nacional em dezembro do ano passado, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 14.759/2023. Ela havia sido instituída em 2011, no então governo Dilma Rousseff, mas 13 anos depois, precisou de uma nova proposição legislativa para ser reconhecida nacionalmente – e isso diz muito sobre o Brasil.

Mais de quatro anos depois do assassinato de George Floyd pelo policial Derek Chauvin, nos Estados Unidos, ter internacionalizado o debate e a revolta acerca da violência policial contra as pessoas negras ao amplificar o grito de que as vidas negras importam, vivemos no Brasil um cenário em que as desigualdades, especialmente baseadas no racismo estrutural persistente na sociedade brasileira, não podem mais ser ignoradas. Ou, ao menos, existem múltiplos esforços que vêm convergindo nesse sentido.

Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 revelou que, pela primeira vez desde 1991, a população autodeclarada parda do país superou a branca: 45,3% afirmaram ser pardos, 43,5% brancos, 10,2% pretos, 0,8% indígenas e 0,4% amarelos. Reeditando a análise realizada pelas pesquisadoras Andressa Kikuti Dancosky e Janara Nicoletti em 2019, tomando-se o resultado do Censo de 2022 em correlação com os dados da pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, nota-se que, apesar de uma perceptível melhora nos índices, o percentual de jornalistas negros no país, de 29,9% (Lima et al., 2022), ainda está longe de ser representativo da parcela da população que se autodeclara como negra, de 55,5%.

E essa insuficiência na representatividade constitui e também é constituída por vários aspectos ancorados no racismo estrutural, passando pelos efeitos da articulação entre o racismo e o sexismo (Gonzalez, 1984), pela exclusão limitante alimentada pelo ódio e pelo preconceito, mas também, pela necessidade de se enfrentar concretamente os fatores que impedem o acesso e a permanência das pessoas negras aos mais variados postos na sociedade, inclusive no jornalismo.

Ainda em novembro de 2024, pela primeira vez em 78 anos desde sua fundação, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) realizou o Encontro Nacional de Mulheres Jornalistas (EMJor), em São Paulo. No documento que resultou das discussões, a Carta de São Paulo, chama a atenção o compromisso expresso de se buscar esforços para enfrentar o cenário de desigualdades colocado no jornalismo brasileiro, demarcado pelo preconceito e violência baseados em gênero e cor.

A programação do 1º EMJor contou com a participação da jornalista e apresentadora da TV Brasil, Luciana Barreto, que levou para o encontro além da sua experiência de resistência no jornalismo, suas reflexões acadêmicas consolidadas no livro Discursos de ódio contra negros nas redes sociais. Na obra, resultado de sua dissertação sobre o tema no mestrado em Relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Luciana parte de uma reflexão sobre como o racismo é estruturado na sociedade brasileira para realizar uma análise discursiva sobre as expressões usadas nos discursos de ódio.

Além das constatações sobre como os ataques pelas redes sociais corroboram para a desumanização da população negra, entre outros aspectos, Luciana Barreto adverte para os efeitos desses discursos de ódio que, em sua análise, atuam como uma forma de exclusão, paralisante e limitante, com o objetivo de impedir que a população negra ocupe espaços na sociedade.

O cenário desnudado por Luciana Barreto não pode ser pensado de forma desvinculada da representatividade insuficiente da população negra na mídia e no jornalismo. Se a ausência das pessoas não-brancas nas telenovelas era vista como um fator de perpetuação da exclusão e reafirmador de estereótipos limitantes, chegando a gerar intervenções externas ao campo em um cenário recente, atualmente essa dimensão precisa ser enfrentada por meio de ações concretas também no jornalismo como um todo.

Os esforços de reflexão sobre o jornalismo com perspectiva antirracista existem e corroboram para a constatação de que, do impresso ao digital e sem deixar de lado o rádio e a TV, a prática jornalística precisa contemplar a diversidade não apenas em termos de visibilidade da população negra, mas também, no que se refere à representatividade dentro das redações, contemplando também funções diretivas e de coordenação, à compreensão da realidade complexa para a constituição da oferta noticiosa, contemplando as mais variadas existências quanto à linguagem, à pauta e à produção jornalística, inclusive quanto à escolha das fontes. Mas este precisa ser um esforço cotidiano e não apenas pautado de forma datada quando há um feriado nacional, como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

Mazelas persistentes

O Estatuto da Igualdade Racial foi instituído no Brasil em 2010, mas no campo jornalístico, entidades do movimento sindical como a Fenaj e os sindicatos de jornalistas já tratam da questão desde 2001, quando foi criada a primeira Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo. Em 2008, foi estabelecida a Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira) pela Fenaj, congregando 11 núcleos ou comissões com propósito semelhante em todo o país.

No campo acadêmico, igualmente pululam os mais variados esforços para a constatação de mazelas persistentes, bem como, para a identificação e propositura de possíveis soluções. Iniciativas jornalísticas independentes como o Alma PretaNotícia Preta, entre outras (Andrade; Veloso, 2023), têm sido objetos de reflexão sobre o jornalismo como propositor de uma outra agenda, apontando para novas matrizes de visibilidade e discurso, ao passo em que projetos de extensão como o Guia de Fontes de Informação Jornalística Antirracista (Leite et al., 2021), produzido pela Universidade Federal de Pelotas e Coletivo Negro Tim Lopes, buscam “[…] apresentar pessoas negras como protagonistas de diferentes pautas, combatendo uma leitura distorcida e preconceituosa do seu papel na sociedade” (Leite et al., 2021, p. 126).

Quando a pauta chega ao ‘mercado’

Alvo de cobranças sobre a representatividade da população negra em 2018, conforme listou-se anteriormente, a maior emissora de TV aberta do Brasil, a Rede Globo, a título de ilustração, vem esboçando reações quanto ao imperativo do jornalismo de base antirracista.

Entre outras iniciativas – que não serão objeto de apreciação aqui – destaca-se a realização, em setembro de 2024, do Festival Negritudes (com acesso disponível pela Globo Play). Além de valorizar manifestações culturais que aludem especificamente à população negra, o evento reuniu profissionais negros da emissora de todo o Brasil para a discussão a respeito de narrativas negras, identidade, pertencimento, moda e estética atreladas à negritude.

No entanto, a programação também reservou espaço às discussões sobre a representatividade da população negra na publicidade, além de dedicar um painel à apresentação de dados sobre uma pesquisa de mercado realizada pela empresa sobre o “comportamento de diferentes tipos de consumidores negros”. Isso é ilustrativo de que o movimento por uma mídia com perspectiva menos racista existe e, mesmo a passos ainda lentos, vem forçando as múltiplas barreiras que há séculos estão sedimentadas na sociedade brasileira – ainda que isso se relacione, em alguma medida, às preocupações de ordem capitalista.

Cabe, no entanto, um necessário contraponto, aqui inspirado no trabalho de conclusão de curso da jornalista Yasmin Santos, que encerrou a graduação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2019: ao adotar discursos públicos contra o racismo, um veículo jornalístico acaba por se esquivar dessa prática, mas isso “[…] não é suficiente para provar que ele seja antirracista” (Santos, 2019, p. 18). Para Santos, que entrevistou 47 jornalistas negros, é ao se observar mais atentamente as ações concretas de um veículo que se pode perceber como ele retrata a população negra e como se sentem os profissionais negros que nele trabalham.

Entraves ao jornalismo antirracista

A filósofa e ativista norte-americana, Angela Davis, sacramentou que em uma sociedade racista, não adianta não ser racista, é preciso ser antirracista (Santos, 2021). A asserção ressalta, dessa forma, que se deve avançar para além do discurso, alcançando-se a prática. Transpondo essa constatação para o jornalismo, fica evidente que para além dos esforços que já estão colocados, se necessita avançar também nos aspectos que o determinam concretamente, inclusive desde a formação dos futuros jornalistas.

Há alguns dias, durante o II Simpósio Catarinense de Ensino de Jornalismo, na mesa de debates Paulo Freire no Jornalismo e no seu Ensino, o pesquisador de jornalismo Eduardo Meditsch (UFSC) refletiu sobre como o chamado jornalismo de referência brasileiro funciona como um “jornalismo de casta”, ao passo em que é produzido por uma casta para um público que é a própria casta. Em outras palavras, um jornalismo que ainda trata majoritariamente dos ricos, brancos, liberais e ‘machos’.

A leitura e observação atentas ao que está posto nas palavras de Davis e no que expôs Meditsch, ajudam a pensar sobre o quanto ainda precisamos avançar, apesar do que já trilhamos enquanto sociedade. Um dos aspectos essenciais se refere ao acesso e permanência nos cursos universitários, em que há a necessidade de enfatizar o quanto a Lei de Cotas no Ensino Superior, estabelecida pela lei federal 12.711, em 2012 e revisada no ano passado, contribuiu para gerar transformações dentro e fora das universidades.

A publicação Juventudes, justiça racial e de gênero – Caminhos para o fortalecimento das políticas de acesso e permanência no ensino superior (Barboza, 2024), ilustra que desde que a Lei de Cotas entrou em vigor, mais de um milhão de pessoas ingressaram no Ensino Superior em decorrência das ações afirmativas – o que representou um aumento de 167% entre 2012 e 2022, favorecendo principalmente a população negra e pobre (Nonato; Santiago, 2023). A ausência de políticas suficientes de permanência desses estudantes nas universidades, inclusive na pós-graduação, por outro lado, é apontada como um entrave ainda a ser superado. O que, logicamente, também afeta o jornalismo.

No mercado de trabalho, assim como na formação superior, as barreiras ainda se colocam de forma concreta. Nonato e Santiago (2023), ao investigar dados sobre as trajetórias de jornalistas negros a partir do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, identificaram que além de terem carreiras curtas e marcadas pela alta rotatividade, com trocas constantes de vínculos empregatícios – 52,7% tiveram entre dois e cinco empregos ao longo da vida profissional, enquanto 22,3% relataram ter de seis a 10 vínculos – 31,6% dos jornalistas negros são afetados diretamente pela ‘pejotização’. Sendo essa caracterizada por formas de trabalho com contrato precário, sem estabilidade, renda assegurada e acesso a direitos trabalhistas básicos, como férias e 13º salário.

Ainda sobre as desigualdades que travam o acesso e permanência de negras e negros no jornalismo, Nonato e Santiago (2023) revelam que 43% das pessoas negras trabalham em média mais de nove horas por dia. Com uma remuneração mensal que atinge no máximo R$ 5,5 mil para 70% dos profissionais negros, apenas um terço desses jornalistas afirma que o salário mensal é suficiente para arcar com as despesas básicas. Dessa forma, mais da metade das pessoas negras que atuam como jornalistas precisa recorrer a fontes de renda adicionais para se manter.

Outras constatações de Nonato e Santiago (2023) expõem ainda que a maioria dos jornalistas negros ocupa funções operacionais e não de chefia; quase 70% sentem-se cotidianamente estressados; 31,5% já sofreram ataques ou ameaças virtuais em decorrência do trabalho, sendo que boa parte dos indicadores piora consideravelmente quando se aplica o recorte de gênero. Um retrato claro da mídia e da sociedade brasileiras, lamentavelmente.

Em síntese, para encerrar um debate que é muito mais profundo, o acesso e a permanência de negras e negros no jornalismo esbarra em uma série de aspectos que tanto se ancoram no racismo estrutural brasileiro, quanto persistem à medida em que diversificar o acesso à profissão não se constitui como uma preocupação social, pública e concreta. Isso posto, as lutas por um jornalismo antirracista não devem visar apenas a garantia de inserção da população negra no jornalismo. É preciso que isso aconteça, sim, mas que se reverta em mudanças efetivas desde a gestão das empresas, sem penalizar as pessoas com base na distinção de cor e raça; e em práticas jornalísticas que rompam com estereótipos estabelecidos e passem a problematizar aquilo que não se pode mais admitir na realidade brasileira contemporânea: a violência fatal do Estado contra jovens negros, o encarceramento em massa da população negra, a violência generificada e direcionada contra meninas e mulheres negras, a restrição de oportunidades e a imposição de precarização aprofundada, a invisibilização.

Dessa forma, compreendemos que cada lampejo de resistência importa. A luta de Zumbi segue necessária e absolutamente atual, pois como afirmou a jornalista Luciana Barreto no Encontro de Mulheres Jornalistas, o jornalismo não pode (e nem deve) ficar refém de uma única visão, de uma única perspectiva e de uma única vivência de mundo.

Referências

ANDRADE, A. O. de; VELOSO, M. do S. F. Que o giro se faça roda: o jornalismo antirracista das mídias negras como movimento circular e decolonial. Revista Pauta Geral-Estudos em Jornalismo, Ponta Grossa, v.10, ed. 121880, 2023, P.165-182. Disponível em: < https://tinyurl.com/yc6xfajb>. Acesso em: 30 nov. 2024.

BARBOZA, B. Juventudes, Justiça Racial e de Gênero – Caminhos para o fortalecimento das políticas de acesso e permanência no ensino superior. São Paulo: OxFam Brasil, 2024. Disponível em: < https://tinyurl.com/3p5ytcx7>. Acesso em: 25 nov. 2024.

‌GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, P. 223-244. Disponível em: <https://tinyurl.com/29dv54wb>. Acesso em: 30 nov. 2024.

KIKUTI DANCOSKY, A.; NICOLETTI, J. Falta de diversidade nas redações esconde racismo estrutural do jornalismo e dificulta o debate sobre desigualdade entre negros e brancos. Disponível em: <https://tinyurl.com/4b7ehrrn>. Acesso em: 30 nov. 2024.

LEITE, S. P. M.; et al. Guia de fontes de informação para um jornalismo antirracista. Expressa Extensão, v. 26, n. 3, 2021, P.123-131. Disponível em<https://tinyurl.com/fm9a2hva>. Acesso em: 01 dez. 2024.

LIMA, S. P.; et al. Perfil do Jornalista Brasileiro 2021: características sociodemográficas, políticas, de saúde e do trabalho. Florianópolis: Quorum Comunicações, 2022. Disponível em: <https://tinyurl.com/3ap9wupw>. Acesso em: 12 dez. 2022.

NONATO, C.; SANTIAGO, A. Mais acesso, poucas oportunidades: O perfil de jornalistas negras e negros após uma década de pesquisas sobre o mundo do trabalho. In: LIMA, S.; MICK, J.; NICOLETTI, J. (coord.). Perfil do jornalista brasileiro 2021: características sociodemográficas, políticas, de saúde e do trabalho. Florianópolis: Quorum Comunicações, 2022. Disponível em: <https://tinyurl.com/93ne9b5w>. Acesso em: 12 mar. 2023.

SANTOS, Yasmin. Letra preta: a inserção de jornalistas negros no impresso. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <https://tinyurl.com/45umj7d2>. Acesso em: 28 nov. 2024.

texto publicado originalmente em objETHOS.

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Aline Rios é jornalista, doutoranda no PPGJOR e pesquisadora no objETHOS