“O jornalismo é o sistema imunológico da sociedade”. A comparação, feita no último dia 22 pela diretora do Stanford Health Communication Initiative, Seema Yasmin em entrevista para o Estadão, é pertinente, pois aponta o importante papel que tem o jornalismo de agir como um sistema de defesa contra a desinformação, desmentindo “notícias” falsas e avisando quando algo não vai bem. É uma função importantíssima, e que ficou muito evidente durante a cobertura da pandemia de COVID-19, para a qual jornalistas se desdobraram em aprender sobre saúde e ciência para poderem informar e educar o público sobre esses temas. Para a ombudsman da Folha de S. Paulo, Flavia Lima, a imprensa mais acertou do que errou na cobertura da pandemia, repassando aos leitores informações precisas e tão seguras quanto possíveis, com didatismo na explicação dos textos. Nessa recente entrevista para o objETHOS, ela aponta também que nunca ficou tão clara a importância da informação bem apurada para a segurança da vida das pessoas, embora não haja garantias de que a valorização da informação confiável não vá desembocar na redução ainda maior das redações, que já sofrem há anos com cortes por conta da má saúde econômica dos jornais. O cenário, já ruim, foi intensificado pela pandemia e atingiu os negócios jornalísticos em cheio, minando dezenas de veículos, sobretudo os impressos. “E o mais desafiador é que o leitor não tem nada a ver com isso. Ele quer um bom produto, o que precisa continuar a ser entregue”, diz Lima.
Essas duas entrevistas que circularam durante última semana me fizeram pensar sobre uma questão complexa, e para a qual pretendo chamar a atenção nesse texto: como o jornalismo pode ser um sistema imunológico eficaz para a sociedade, se ele próprio anda doente? É como se o jornalismo fosse acometido por uma espécie de doença autoimune, que ataca severamente as células mais sensíveis do sistema, e que são as responsáveis por mantê-lo funcionando: as(os) jornalistas. Com essas “células” debilitadas pela precarização do trabalho, fica difícil cumprir seu papel social de maneira adequada. Nas próximas linhas, procuro falar sobre algumas das questões relacionadas ao problema da precarização: feminilização, juvenilização e multifuncionalidade no contexto do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Elas são úteis para o diagnóstico que temos atualmente sobre o trabalho de jornalistas, e para compreender algumas das causas do sofrimento que acomete a categoria profissional. A esses fenômenos, soma-se a pandemia da COVID-19, que intensificou ainda mais a situação já dramática vivida pelo jornalismo no Brasil.
Um diagnóstico do problema
Em nosso país, os dados sociodemográficos mais confiáveis sobre a profissão de jornalista vem da pesquisa acadêmica. O Perfil do Jornalista Brasileiro (MICK; LIMA, 2013) – maior estudo desse tipo feito até então – caracteriza a classe de jornalistas como sendo de maioria feminina, jovem (de até 30 anos de idade), solteira e muito escolarizada (nove em cada dez respondentes da pesquisa eram graduados em jornalismo, quatro em cada dez tinha pós-graduação). Esses dados subsidiaram descobertas importantes, por exemplo, a de que a feminilização e juvenilização da profissão estão relacionadas ao processo de precarização. O problema não é a feminilização em si, mas sim o fato de que o aumento no número de mulheres não representou uma transformação qualitativa no trabalho dessas profissionais, na direção da igualdade de gênero. Ao contrário, mulheres têm salários mais baixos que os homens e enfrentam dificuldades para chegar a posições de chefia – o “teto de vidro” (PONTES, 2017). Já a juvenilização foi intensificada como forma de reduzir os questionamentos trabalhistas, éticos e ideológicos, além de baratear custos da produção e diminuir atritos (FÍGARO; NONATO, 2017). A baixa presença de pessoas negras e da periferia no jornalismo revelam também preconceitos estruturais e chamam a atenção para a necessidade de diversificar as redações.
O processo de precarização se relaciona a mudanças estruturais na profissão, que teve de se adaptar à conjuntura de diversas crises – a crise sociopolítica e econômica no Brasil e a própria crise econômica, ética e de credibilidade do jornalismo perante os públicos. Ele é medido por indicadores comuns também a outras categorias, como a deterioração dos contratos e condições de trabalho, a intensificação e aumento das jornadas, diminuição do número de postos e multiplicação das tarefas a serem cumpridas pela(o) mesma(o) profissional.
A inserção de novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) que ocasionou o processo de convergência digital eliminou diversas funções que antes eram desempenhadas por especialistas (como diagramadores, copidesques, laboratoristas), e consequentemente jornalistas acabaram pressionados a absorver mais funções além daquilo que já faziam, e também, em muitos casos, precisarem produzir conteúdos para diversas mídias de um mesmo grupo empresarial.
Mesmo os movimentos de criação de novos arranjos econômicos de mídia como alternativas de trabalho para jornalistas enfrentam o desafio da precariedade do ponto de vista da remuneração e da reposição da força de trabalho, e fragilidade financeira. Como afirma a profa. Dra. Roseli Fígaro, autora de um desses estudos: “Portanto, o ser jornalista aqui é um ser dividido que sofre porque vislumbra e faz acontecer o jornalismo em que acredita, mas é impedido de dedicar-se integralmente a essa atividade porque não sobrevive dela” (FÍGARO, 2018, p.128).
“…E aí veio a pandemia”, jargão tão utilizado nesse fatídico ano de 2020 para designar processos interrompidos, planos frustrados e situações inesperadas decorrentes da epidemia da COVID-19. Em se tratando do trabalho jornalístico, quem continuou indo às ruas enfrentou insegurança, estresse e risco à saúde. Quem pôde trabalhar de casa foi desafiado pela gestão da vida doméstica em paralelo à vida profissional, controle da jornada de trabalho e os custos da infraestrutura, que nem sempre é pago pelas empresas. A pandemia também agravou ainda mais o quadro de demissões, precarização de contratos, diminuição salarial, densificação do trabalho, aumento no adoecimento, estresse e incertezas sobre o futuro, sendo que as mulheres jornalistas foram as mais afetadas, por conta do acúmulo maior com atividades domésticas e de cuidado.
Há antídoto?
Para que jornalistas consigam cumprir de maneira adequada o papel de “sistema imunológico da sociedade”, como sugere Seema Yasmin, é necessário que eles próprios sejam livrados das chagas que acometem seu trabalho. Jornalistas reportam diariamente o desemprego alheio e as estratégias de sobrevivência em meio à crise, mas quase não falam publicamente sobre suas próprias incertezas e sofrimentos. Nesse sentido, falar sobre essa questão, que é bastante discutida na pesquisa acadêmica mas pouco trazida ao debate público, parece ser um primeiro passo importante na busca da cura.
É paradoxal que jornalistas tenham a expectativa de zelar pela saúde da sociedade, produzindo conteúdo relevante, mas que essa qualidade seja mantida às custas de sua própria saúde emocional e física por causa das condições de trabalho degradadas – o que Thales Lelo (2019) chama, instigantemente, de “sofrimento ético”. Além disso, há uma correlação direta entre a deterioração dos indicadores de qualidade editorial e os indicadores de precarização da profissão, como revela a tese de doutorado da pesquisadora do objETHOS, Janara Nicoletti – que aliás é ganhadora do Prêmio Adelmo Genro Filho em 2020. Se o jornalismo de qualidade é importante para todas as pessoas, então este é um tema que deve ser discutido e debatido por todas. A saúde da sociedade agradece.
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Referências:
LELO, T. V. Reestruturações produtivas no mundo do trabalho dos jornalistas: precariedade, tecnologia e manifestações da identidade profissional. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2019.
MICK, J.; LIMA, S. Perfil do Jornalista Brasileiro: características demográficas, políticas e do trabalho jornalístico em 2012. Florianópolis: Insular, 2013.
PONTES, F. S. Desigualdades estruturais de gênero no trabalho jornalístico: o perfil das jornalistas brasileiras. E-COMPÓS (BRASÍLIA), v. 20, p. 1-15, 2017.
FÍGARO, R (Org.). As relações de comunicação e as condições de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos alternativos às grandes corporações de mídia. São Paulo: ECA-USP, 2018.
FÍGARO, R.; NONATO, C. Novos ‘arranjos econômicos’ alternativos para a produção jornalística. Contemporânea, v.15 n.1, p 47-63, 2017.
Publicado originalmente por objETHOS.
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Andressa Kikuti é doutoranda em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS.