Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Soares: “Torturados, os números dizem qualquer coisa”

(Foto: Grupo de Inteligência Artificial – idEA)

No Brasil, desde o primeiro caso confirmado de covid-19, em 26 de fevereiro, a “matemática do achatamento da curva” está entre as principais manchetes da imprensa. Números são uma linguagem global, essenciais para a construção de informações jornalísticas. O jornalismo de dados faz parte das habilidades técnicas da profissão e, nos últimos anos, são notáveis os avanços. Aos poucos, a profissão ganha jornalistas estatisticamente preparados para dar sentido aos dados.

Para o jornalista Marcelo Soares, a predição de casos de covid-19 no Brasil depende, principalmente, do “modelo e da qualidade dos dados que são colocados nele”. A demora dos estados e municípios em informar novos casos, a falta de testagem para o coronavírus e a instabilidade das informações fornecidas pelo governo federal não obedecem a um padrão – são desorganizadas, o que pode comprometer a precisão.

Especialista e um dos pioneiros no estudo e prática do jornalismo de dados no país, Soares vem desempenhando, desde o dia 9 de março, um vigoroso trabalho estatístico na plataforma Lagom Data sobre a evolução da pandemia no Brasil. Ele, que há mais de vinte anos conversa com os dados, é fascinado pelo “Jornalismo de Precisão” – denominação dada por Philip Meyer -, sua fonte de inspiração. Marcelo é uma das referências em dados no Brasil, faz o monitoramento diário dos números fornecidos pelas secretarias estaduais de Saúde e suas análises estão no circuito das notícias, servindo como fonte para veículos da mídia como BBC Brasil, Estadão, Uol Notícias e recente participação como entrevistador na bancada do programa Roda Viva.

Marcelo Soares é graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atua há 22 anos especialmente com jornalismo de dados. Dirige a empresa Lagom Data, que faz coleta, análise e narrativa com dados para empresas jornalísticas e organizações da sociedade civil. Foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), da qual foi o primeiro gerente, e é membro do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ). Foi correspondente, no Brasil, do jornal Los Angeles Times, durante cinco anos, e apresentou comentários políticos semanais na MTV Brasil na eleição de 2010. Trabalhou por muitos anos na Folha de S.Paulo, onde foi o primeiro editor de audiência e dados da imprensa brasileira. É frequentemente convidado a ministrar palestras, aulas e cursos em universidades, congressos e eventos na área da imprensa. Trabalhou em projetos de jornalismo de dados no Brasil que ganharam prêmios Esso (2006, com a Transparência Brasil, o primeiro prêmio para um trabalho de jornalismo de dados no país), Petrobras (2017, com a Folha) e INEP (2018, com a Folha). Com o ICIJ, colaborou em quatro projetos que ganharam doze prêmios internacionais. Em seu mais novo projeto, dedica-se a estudar como “a noção de incerteza em dados epidemiológicos entra no debate sobre a subnotificação dos casos de coronavírus”, no Programa de Pós-Graduação Científica e Cultural (PPG-DCC) – nível de mestrado do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ao objETHOS, Soares fala sobre a faceta de uma prática jornalística que existe há décadas – mas que, se mal utilizada, pode comprometer a credibilidade jornalística e colocar vidas em risco. Recomenda o agnosticismo para projeções sobre o futuro, “até porque todas as projeções de futuro podem mudar de acordo com as nossas ações”. E orienta: “Ouça mais os estudiosos do que os políticos. Vale para tudo, mas vale ainda mais quando vidas estão em jogo”.

Na crise global de saúde que ora vivemos, o jornalismo de dados assume um papel central para as informações factuais relevantes. O Lagom Data começou a observar imprecisões nas informações e passou a monitorar e atualizar os dados das secretarias estaduais de Saúde precisamente no dia 9 de março. O Ministério da Saúde fixou o pico dos casos para o fim do outono, com circulação do vírus até meados de setembro. Mas tudo é muito novo e muda rapidamente. Como fazer uso dos dados de forma responsável diante de um cenário de incertezas? Mesmo com alto grau de subnotificações, é possível fazer projeções seguras?

O jornalismo tem um fascínio grande por números, na mesma medida em que os jornalistas são muitas vezes despreparados para lidar com eles. Tendemos a lidar mal com a incerteza, e tudo o que se tem de mais concreto sobre o coronavírus é a incerteza. Ao mesmo tempo, as autoridades têm pressa, por vários motivos, vários deles legítimos. Então, muitas vezes as autoridades dão declarações que visam um determinado efeito – tranquilizar a população, por exemplo. A esfera política tem mais dificuldade com a incerteza do que o jornalismo. Os jornalistas de política, esporte, cultura e outras editorias tradicionais sabem que muitos dos seus entrevistados têm limitações ao que podem ou querem dizer. Os melhores sabem lidar com isso e checar afirmações com outras fontes.

Quando se trata de dados, porém, muitos chegam pouco prevenidos porque se acredita que dados são frios, objetivos, exatos. Mas, na verdade, são fontes tão cheias de limites quanto as fontes humanas. Isso porque, lá na ponta, os dados são humanos até demais. Quem atenta ao contexto em que os dados são produzidos consegue extrair muita coisa deles, tanto pelo que dizem quanto pelo que não dizem. Por exemplo: a esta altura, todos sabem que os dados divulgados diariamente pelo Ministério da Saúde e pelas secretarias não são a verdade completa da incidência da doença. Faltam testes e, nessa situação, a orientação é testar principalmente os casos graves.

O resultado dos testes pode demorar, porque depende de recursos humanos para processar uma fila que cresce mais a cada dia, então um caso positivo testado hoje vai aparecer na contagem só daqui a uns dias. As mortes estão levando até duas semanas para serem confirmadas. Existem casos que podem ser de coronavírus que foram diagnosticados erroneamente, como outras síndromes respiratórias. Hoje, essa noção já entrou no debate público e os sistemas de saúde estão mais atentos. E algumas cidades têm confirmado mais casos do que as secretarias estaduais de Saúde reconhecem para o local. Isso, em parte, ocorre porque há vários tipos de teste em uso, com graus de qualidade variados. Então, quando o governo fala um número fechado todo final de tarde, é preciso ver o que compõe esse número. É algo bem trabalhoso, e quem faz jornalismo diário é cobrado principalmente pela agilidade.

Projeções são outro problema. No meu primeiro manual de programação, que veio com meu CP-400 [computador doméstico de oito bits produzido no Brasil em meados da década de 1980], nos anos 1980, aprendi uma frase em inglês: “garbage in, garbage out”. Ou seja: trabalhar com dados ruins leva a resultados ruins. Isso porque uma projeção depende de parâmetros conhecidos. Por exemplo: para quantas pessoas, em média, cada infectado transmite a doença? De todos os que são infectados, qual a proporção que morre? Qual a proporção dos infectados que não apresenta sintomas, mas transmite? E por aí vai. Para doenças já conhecidas, esses parâmetros já estão estabelecidos. No caso da covid-19, esses parâmetros estão sendo descobertos ao mesmo tempo em que se está tentando tratar os casos conhecidos. Ele pegou o mundo de calças curtas.

A recomendação de isolamento social é funcional nesse caso, mesmo com todas as consequências econômicas. Quanto mais contatos as pessoas têm no dia, maior a chance de quem tem a doença passar a quem não tem. O isolamento reduz o número de contatos, desacelerando a carga no sistema de saúde. Agora: até quando vai durar? Ninguém sabe. Alguns países que começaram o isolamento antes estão começando agora a afrouxar. É preciso ver como vai se comportar a doença com as pessoas voltando às ruas. Estudiosos do assunto dizem que é possível que tenhamos várias fases de isolamento até a população estar imunizada.

Além disso, no Brasil temos o agravante de que a maior autoridade do país joga contra as medidas de prevenção. Boicota a atuação do ministro da Saúde [em referência ao ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido no dia 16 de abril pelo presidente Jair Bolsonaro], única pessoa no governo que fala “lé com cré” a respeito da doença. Nas redes sociais, estimula que seus apoiadores saiam às ruas e exijam a reabertura do comércio. Ainda ontem, vi o estudo da UFSC sobre a aceleração do contágio em Santa Catarina após as carreatas do Vai-pra-Rua. Num final de semana, em São Paulo, o presidente fez videochamada com os que estavam na avenida Paulista pedindo a morte do governador e dançando com caixões de papelão. É preocupante em vários níveis.

Este também é um momento no qual surgem muitas análises de especialistas e novas iniciativas para visualização de dados. Como o público pode diferenciar informações enganosas de análises e projetos responsáveis e consistentes?

É uma boa pergunta, para a qual não tenho respostas definitivas. Como consumidor de informação, minha principal preocupação é a procedência. Quando vejo uma análise de especialista, procuro descobrir em que a pessoa é especialista. Há muitos especialistas em economia fazendo serão como epidemiologistas amadores, o que pode ser um problema. Outro dia, naquele programa famoso daquela nova emissora a cabo, o debatedor mais folclórico reclamou que só os infectologistas estavam sendo levados a sério quando falam a respeito de uma doença infecciosa. Pois é.

Outra coisa que eu procuro verificar é se a afirmação está sendo demonstrada. Há afirmações de todo tipo sendo feitas a partir de dados e gráficos. Torturados, os números dizem qualquer coisa. Um ex-ministro e atual candidato a ministro tem sido useiro e vezeiro de dar exemplos disso, chutando números futuros e usando gráficos sem indicação da escala dos eixos, ou que vão só até a data mais conveniente.

Também é saudável manter um certo agnosticismo em relação a projeções sobre o futuro. Eu não as tomo a ferro e fogo, até porque todas as projeções de futuro podem mudar de acordo com as nossas ações. Projeções epidemiológicas são feitas para ter ideia de qual seria o cenário mais grave e, em seguida, tomar medidas para evitar que ele ocorra.

Uma última dica é: ouça mais os estudiosos do que os políticos. Vale para tudo, mas vale ainda mais quando vidas estão em jogo.

De maneira geral, como você avalia a qualidade jornalística da cobertura da pandemia, em especial no Brasil, considerando a produção de conteúdo das grandes empresas do país (grupos Globo, Folha, Estadão, Band, SBT, Record etc.) em suas diferentes plataformas?

Assisto muito pouca televisão há muitos anos, sequer tenho aparelho de TV em casa, então qualquer avaliação que eu possa fazer da qualidade geral das emissoras de TV é praticamente sem base. Como não assino o Estadão e O Globo, e seus sites têm paywall, tenho poucos subsídios para avaliar o trabalho que têm feito. Na Folha eu trabalhei por muitos anos, sou amigo de vários repórteres que produzem por lá, então sou suspeito para falar. Então, falo mais em geral. Ainda em março, o coronavírus e seus temas conexos superaram o presidente Bolsonaro como tema mais frequente de títulos nos principais jornais brasileiros. Em alguns dias, chegou a 80%. Hoje, deve estar perto de 100%, porque é um assunto que condiciona todos os outros assuntos.

Tenho visto excelentes reportagens sobre a pandemia e é gratificante ver quantas delas vêm de meios de comunicação pequenos e independentes. A cobertura do dia a dia às vezes trata questões de fato como questões de opinião e gerando falsas equivalências. A saga da cloroquina tem sido coberta na mesma chave com que se cobre qualquer outra bobagem que o presidente fala – publica-se com espaço semelhante opiniões a favor e opiniões contra.

Sou assinante do New York Times, fui assinante do Le Monde, leio toda semana The Economist. Tenho visto alguns artigos e colunas publicados na imprensa de referência brasileira, que aspira a um lugar na mesa dos grandes jornais do mundo, que seriam impublicáveis por qualquer outro comensal.

Mas, ressalte-se, tem havido reportagens excelentes e esclarecedoras. Poderíamos passar com menos artigos opinativos, especialmente de políticos falando do que não entendem, mas, na economia da atenção, opinião forte é o que mais atrai clique. Também é o que mais desinforma, mas enfim. Todas as empresas que dão espaço ao osmar-terraplanismo estão no Trust Project, então podem dormir sossegadas com a certeza de que combatem fake news.

Nessa perspectiva, como o uso dos recursos do jornalismo de dados poderia contribuir para a qualidade da informação e fortalecimento da relação entre público e jornalistas?

Trabalhos com dados têm sido parte de algumas das melhores reportagens. O trabalho com visualização tem sido importante para contextualizar as magnitudes envolvidas na pandemia. E nunca vi um gráfico ter tanta influência no debate público quanto o das curvas sem e com achatamento.

Mas o trabalho com dados, muito embora seja minha seara, não é uma panaceia, não serve para tudo. Na expressão “jornalismo de dados”, a língua portuguesa deu a precedência ao que mais faz a diferença: o jornalismo.

É importante mostrar como estão se virando os mais pobres, atingidos de um lado pela ameaça sanitária e de outro pela ameaça econômica, mas isso não cabe numa planilha. Vai demorar meses para haver dados sobre o desemprego causado pela crise, porque o Ministério da Economia parou de publicar os dados da Caged e o IBGE mudou a forma de coleta da PNAD Contínua. É crucial cobrir o funcionamento dos sistemas de saúde, até para entender o contexto dos dados.

No fim, o que ganha a confiança do público disposto a ouvir é um trabalho bem feito.

Em uma sociedade de dados onde os indivíduos são cada vez mais quantificados, quais cuidados éticos um jornalista deve ter?

Não dá pra esquecer que, lá na ponta, os dados são demasiadamente humanos. São produzidos por pessoas e se referem a pessoas. A maior questão ética que tenho visto ultimamente é no aumento da coleta dos dados de cidadãos. especialmente com o uso de dados de monitoramento de celulares para captar padrões de deslocamento em grandes cidades. Ao fim e ao cabo, estamos tratando de vigilância sobre pessoas inocentes. Os dilemas éticos entre um bem e um mal são fáceis de resolver: é só evitar o caminho do mal. Onde o bicho pega é o dilema ético entre dois valores positivos, no caso a prevenção de uma doença mundialmente letal e a preservação da privacidade. Estão sendo abertas portas perigosas para a privacidade das pessoas. É preciso que haja transparência sobre quais e como os dados das pessoas são coletados pelos governos e é preciso garantir que esses dados não sejam usados para outros fins. É possível conceber quem ache razoável o uso de dados de monitoramento de celular para garantir o isolamento social, e isso já está sendo usado apesar de muitos serem contra. Essa porta já foi aberta. A grande questão está em saber o que mais passa por essa porta, coibir os abusos e descobrir como fechá-la depois que sua utilidade epidemiológica se esgotar.

Publicado originalmente no site objETHOS.

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Denise Becker é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (UFSC) e pesquisadora do objETHOS.

Samuel Pantoja Lima é docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (UFSC) e pesquisador do objETHOS.