Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Notícia de cobra: pressão por audiência e deterioração do jornalismo

(Imagem: yrcca/Pixabay)

Aparentemente, ninguém escapa. De medalhões da reportagem como o britânico The Guardian, a portais nacionais e estaduais no Brasil, os répteis rotineiramente marcam presença em notícias que pipocam nos celulares, seja engolindo grandes presas ou surpreendendo humanos em toaletes e jardins de infância.

Serpentes exercem um grande fascínio no público, e são uma jogada certa para um momento crítico do jogo jornalístico mês a mês. Quando se aproxima o dia 30 e os números de audiência não correspondem à meta, é hora dos craques do clique entrarem em campo. Há (muitos) casos de redações, inclusive, em que não há data: todo dia é dia de cobras.

A queda de audiência dos portais, hoje reféns das redes sociais, vem estrangulando jornalistas nas redações e home-offices mundo afora, como uma verdadeira sucuri. Em equipes enxutas, a figura do especialista, ou seja, um repórter que se dedica e aprofunda um determinado tema, passou a ser um luxo. Profissionais com curso superior em jornalismo e experiência em política, esporte, hoje dividem seu tempo debruçados também sobre cobras e lagartos.

É um sinal dos tempos. O alcance e o prestígio da mídia vêm sendo seriamente prejudicados, em meio a uma dependência insalubre de empresas como Meta e Google para chegar aos seus leitores, e uma campanha de difamação nascida na classe política que já beira uma década, a ser turbinada uma vez mais com a volta de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.

Por outro lado, empresas jornalísticas lutam para fechar as contas e demitir o menor número possível de jornalistas. Para poderem sustentar uma audiência que atraia o faturamento com publicidade, as notícias tradicionais, digamos, já não dão conta. Entram em cena, portanto, as cobras.

Ainda assim, a conta não está fechando. Em 2023, a imprensa demitiu mais do que contratou, como ressalta a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas). Entre 2013 e 2021, o mercado de trabalho com carteira assinada no jornalismo encolheu 21,3%. Em números absolutos, foram 12.999 vagas, destacou Samira de Castro, presidenta da entidade.

Vê-se as redações em uma espiral fadada ao fracasso, onde para ter audiência se apela ao banal, que produz a ilusão de vencer o mês, mas que na cauda longa gera uma deterioração do jornalismo, que vive claramente uma era em que precisa reconstruir relevância e recuperar poder econômico. Como será possível alcançar este feito falando de cobras em vasos sanitários?

No Brasil, a porcentagem de pessoas que evitam as notícias alcança picos de 47%, afirma o Relatório Reuters de 2024. Metade da população de leitores do país vem ignorando o jornalismo, que nos feeds da vida vem sendo trocado sem cerimônia por influencers e virais. Apesar dos esforços para aumentar a audiência no TikTok, por exemplo, a maior emissora do país, a TV Globo, tinha cerca de 6 milhões de seguidores na rede social, observou o jornalista Rodrigo Carro no lançamento do relatório, enquanto o comediante Whindersson Nunes tinha 22,4 milhões de espectadores.

Em sua era mais próspera, a imprensa teve a faca e o queijo na mão, produzia conteúdo e monopolizava os canais de distribuição. Hoje, no máximo, ainda tem o queijo. Coletivos alternativos, como a Fiquem Sabendo, entre outros, são um exemplo de como se livrar da escravidão da publicidade, sendo mantidos por uma audiência interessada e verbas disponíveis para projetos jornalísticos de relevância, muitas vezes disponibilizadas, vejam só, pelas big techs.

A mídia alternativa, contudo, ainda não gera empregos como as redações tradicionais. Por outro lado, as metas de audiência na grande imprensa geram uma crise existencial, buscando um alcance que já não possuem, pressionando as equipes a produzir uma contabilidade artificial baseada em notícias virais, sem fidelização ou valorização das marcas.

No meio do caminho, há a notícia. Produto que jamais cessará de existir em abundância, o serviço primordial prestado pelo jornalismo deve ser mais uma vez sua força. Em momentos críticos, como as enchentes no Rio Grande do Sul, na pandemia de Covid-19 ou nas próximas eleições, é preciso o trabalho de jornalistas profissionais, reforçando a necessidade da imprensa como bem público e baliza para a democracia.

O modelo de negócio… Bem, esse precisa de achar uma forma de manter a saúde financeira sem implicar na deterioração do produto.

Texto publicado originalmente em objETHOS.

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Marco Britto é jornalista, mestrando do PPGJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS