Jornalistas e pesquisadores do jornalismo vêm debatendo sobre os novos desafios que a pandemia da COVID-19 está apresentando à profissão. As análises evidenciam questões como a permanência do home office e o fortalecimento da profissão no pós-pandemia. Entretanto, o cenário brasileiro, de crise sanitária e crise política, também dá visibilidade a temas recorrentes, como as divergências entre a ética jornalística e a postura adotada por veículos de comunicação.
O cancelamento da exibição do telejornal SBT Brasil no dia 23 de maio pode ser identificado como um caso que escancarou o conflito entre os princípios do jornalismo e os interesses da empresa. Sílvio Santos, dono do SBT, vetou a exibição do telejornal devido às reclamações do governo federal sobre a cobertura do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, substituindo o telejornal por outro programa sem prestar esclarecimentos ao público. A postura do SBT violou o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que defende o direito do cidadão à informação e considera a obstrução à divulgação de informações um delito contra a sociedade. Com essa ação, a emissora, que é uma concessão pública, deixou claro que as vantagens decorrentes de uma proximidade com o governo de Bolsonaro são mais importantes que sua atividade jornalística. Esse caso não é isolado, mas chamou atenção pela nitidez dos interesses que respaldaram a escolha realizada pela empresa.
Para refletir sobre a configuração desse descompasso, é preciso entender que a notícia vem sendo tratada como um produto vendido por empresas e que, apesar de atender à necessidade social de manter as pessoas informadas, também atende às necessidades do mercado. A consolidação de fortes grupos empresariais no século XX, os quais investiram em grandes tiragens e em grandes audiências, contribuiu para que as empresas tratem a veiculação ou a ausência de notícias como uma moeda de troca com diferentes instituições. Nessa leitura, quando o SBT não transmite o seu principal telejornal para não veicular notícias sobre o vídeo da reunião ministerial, a empresa está usando uma moeda de troca com o governo federal.
As empresas jornalísticas precisam se sustentar, oferecer condições de trabalho e pagar salários dignos aos seus empregados e colaboradores, de modo que a problematização não está na busca por financiamento através de assinaturas, publicidade ou outras formas de patrocínio. O descompasso está em usar a necessidade de rentabilidade da instituição para justificar atitudes que ferem a ética jornalística. O jornalismo é uma atividade econômica, mas também é uma atividade de utilidade pública.
As condições de trabalho no setor trazem indícios importantes para pensar sobre essa relação entre a ética jornalística e a ética dos veículos de comunicação. Desde o início da pandemia, tem-se falado do esforço de jornalistas e demais profissionais que atuam no setor para informar a população, considerando que muitos estão indo às ruas para fazer a apuração de pautas. Também se tem evidenciado os cuidados necessários para garantir a saúde desses profissionais. Levantamento realizado pela Coletiva.net com emissoras de Porto Alegre/RS destacou como o telejornalismo se reorganizou para atender à necessidade de distanciamento social. A notícia aponta para a preocupação das empresas gaúchas com a saúde dos profissionais e dos entrevistados, bem como para a adoção do home office por profissionais que estão no grupo de risco ou que realizam atividades que podem ser executadas em casa. A Globo News trouxe para sua programação o News de Casa, com pequenas inserções que apresentam relatos de jornalistas contando sobre o trabalho jornalístico realizado em home office. Também é comum ver jornalistas contando em seus perfis das redes sociais como estão realizando o trabalho de casa e como estão se adaptando à nova rotina. Mas esse cuidado não é regra: a sucursal do SBT do Rio de Janeiro, que foi denunciada pela situação de insalubridade entre os funcionários, já registrou a morte por coronavírus do editor de imagens José Augusto da Silva e do cinegrafista Robson Thiago Mesquita.
Nesse cenário, os mesmos jornais que noticiam, com pesar, o aumento do desemprego e como isso desestabiliza a vida das pessoas, também estão demitindo os seus profissionais. As notícias sobre a sobrecarga e as descobertas do home office, não falam o quanto isso camufla o aumento da carga horária de jornalistas, que precisam produzir pautas com dados em constante atualização. Nos grandes veículos, o mesmo jornalismo que denuncia a escassez e a precariedade do trabalho num período de recessão, não relata esses impactos na vida dos jornalistas. De acordo com a ABI, apesar do jornalismo ser considerado a fonte mais confiável sobre a pandemia e do aumento de audiência em sites e programas de rádio e televisão, jornalistas estão denunciando demissão em massa e cortes em salários e benefícios.
Além dos jornalistas, outros profissionais que realizam atividades relacionadas com as empresas de jornalismo estão sendo atingidos, dentre eles, os trabalhadores de call center, que foi considerado serviço essencial por decreto do governo federal. Por uma questão pessoal, pude observar que o telemarketing de vendas de assinaturas da Folha de S.Paulo e do Estadão atuaram regularmente nos meses de março, abril e maio, enquanto os números de contaminados pelo coronavírus estavam crescendo significativamente no Brasil. Na segunda quinzena de março e no mês de abril, cheguei a receber duas chamadas semanais do telemarketing de cada um dos jornais. Em maio, as chamadas passaram a ser quinzenais. Nesse mesmo período, em 21 de março, a Folha de S.Paulo noticiou que atendentes de call center temiam pela contaminação e pediam para parar as atividades. No final de abril, a Folha também publicou notícia sobre a morte por coronavírus de uma funcionária de call center de São Paulo. As notícias destacam os relatos dos trabalhadores sobre a falta de cuidado das empresas com protocolos para evitar a contaminação, também ressaltam que a categoria recebe em média um salário mínimo, o que dificulta que os trabalhadores tenham estrutura de internet e computador em suas residências para realizar as atividades em home office. Ao mesmo tempo em que os jornais noticiam a precariedade e os perigos para os trabalhadores de telemarketing, fazem uso dessa atividade para garantir a saúde financeira das empresas.
É indiscutível o esforço do jornalismo brasileiro na cobertura da pandemia. Pautas se preocupam em trazer dados científicos atualizados, problematizam as informações oficiais, contam as histórias das pessoas atingidas pela COVID-19 e noticiam como as políticas públicas estão sendo conduzidas para atender a população. Junto a essa cobertura, grandes veículos como o Grupo Globo, a Folha de S.Paulo e o Estadão, estão detalhando o conturbado cenário econômico e político do país. Um exemplo disso, é a propensão da Globo por divulgar pesquisas sobre como as pessoas estão avaliando a gestão da crise do Coronavírus pelo Governo Federal. Esse tipo de pesquisa não se resume à avaliação da população sobre a gestão de Bolsonaro durante a pandemia, ela apresenta indícios sobre como as pessoas estão interpretando as notícias divulgadas por veículos de grande audiência. Essas pesquisas podem ser interpretadas como uma informação de interesse público, mas também atendem às necessidades do mercado das empresas jornalísticas.
Apesar das contradições entre o que é noticiado e os bastidores das empresas e apesar dos limites impostos por veículos de comunicação de grande audiência, que restringem a notícia à uma mercadoria que precisa gerar lucro ou trazer outras vantagens para a empresa, o jornalismo é uma atividade criadora e de interesse público. A imprensa independente e alternativa tem mostrado iniciativas que buscam se desvencilhar das amarras que limitam a notícia aos interesses do mercado, apresentando pautas e formas de financiamento diferenciadas. Entretanto, o desafio está em aprender como ser rentável sem sucumbir ao descompasso entre a ética jornalística e a ética da instituição.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Silvia Meirelles Leite é professora da UFPEL e pesquisadora do objETHOS.