Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O jornalismo popular em sua busca por assegurar o direito à comunicação no Brasil

Quando o jornalismo hegemônico não fala sobre a realidade na periferia, cabe ao jornalismo popular preencher este vazio. (Imagem: Rede Emancipa)

Assim como a cidadania, o conceito de jornalismo popular é histórico. Apesar de conter um sentido abstrato comum que faz referências às diversas iniciativas de jornalismo operadas nos contextos dos movimentos e comunidades populares, não é um conceito encerrado em si mesmo. Atualiza-se de acordo com as mudanças e demandas sociais criadas no interior de realidades marcadas por desigualdades sociais. É neste sentido que podemos vislumbrar a potência do jornalismo popular brasileiro contemporâneo, ainda que o contexto do socialismo real que ocasionou o seu crescimento rápido e de outros de perspectiva alternativa na América Latina na década de 1970 esteja desfalecido.

As possibilidades tecnológicas atuais combinadas às diversidades culturais e sociais brasileiras colaboram para a existência de experiências de jornalismo popular com diversos formatos, linguagens e especificidades editoriais. Enquanto alguns conteúdos jornalísticos de cunho comunitário são difundidos por meio de veículos embrionários de comunicação popular, como rádios-bicicleta e sistemas de alto-falantes, outros possuem como canal meios digitais para ampliarem o alcance de público (PERUZZO, 2009). Há ainda os que centralizam a questão do território periférico e suas demandas locais como norte jornalístico, como verificado no jornal impresso Maré Notícias, no Rio de Janeiro, e os que interseccionam áreas de interesse, como no portal jornalístico Nós, mulheres da periferia, em São Paulo, que debate questões populares, de raça e território a partir de uma perspectiva de gênero.

Em comum, essas iniciativas jornalísticas possuem o propósito de gerar conhecimentos sobre as realidades e culturas populares que comumente não são vistas no jornalismo hegemônico. Neste, as localidades empobrecidas e suas populações são comumente representadas pelo estigma da violência, da ignorância e da miséria. Naquelas, busca-se mostrar a efervescência cultural, política e econômica existente nas comunidades, bem como as problemáticas vividas pela população. Sobre a relação entre jornalismos popular e hegemônico, Cicilia Peruzzo (2009) esclarece que, diferentemente de boa parte do jornalismo alternativo ou independente, o jornalismo popular não se propõe a ser uma alternativa aos conteúdos veiculados na grande imprensa, ainda que fomente uma visão alternativa de mundo. Isso porque não abarca os conteúdos mais gerais que esta oferta e, portanto, não é sua pretensão substituí-la. Sua intenção é complementá-la, preencher a lacuna da falta de cobertura de vários acontecimentos que se desenvolvem nas localidades e fomentar a valorização das suas culturas e lutas políticas por uma perspectiva progressista. Para tanto, não só o público a que essas iniciativas se destinam é formado preponderantemente pelos moradores das comunidades, como também os jornalistas produtores das mensagens são destas localidades.

Interessa ao jornalismo popular contemporâneo enfocar o buraco na rua, a falta de esgotamento sanitário, o show de rap que acontecerá na comunidade, as lutas políticas dos conselhos comunitários e dos demais movimentos sociais existentes nas localidades. Quando trata de uma pauta de interesse internacional ou nacional, enfatiza o impacto que o acontecimento causa diretamente na vida dos setores empobrecidos da população. Um exemplo concreto disso é a matéria Coronavírus e as quebradas: 16 perguntas ainda sem respostas sobre impacto da pandemia nas periferias. Produzida pelo Periferia em Movimento na última quinta-feira (12), incita questionamentos ainda não vistos na grande mídia, como: “As periferias vão receber recursos da saúde de forma proporcional às nossas necessidades? (…) Como fazer quarentena em área de aglomeração, como periferias e favelas? (…) Se rolar quarentena, quem vai dirigir os ônibus, fazer o pão de cada dia e entregar a comida do Ifood no apartamento da classe média? (…)”.

Para fortalecer a cobertura de pautas que centralizam a territorialidade periférica como gancho das matérias jornalísticas, muitas dessas iniciativas vêm inclusive se articulando em organizações maiores de apoio, como a Rede Jornalistas de Periferias, em São Paulo, que reúne treze coletivos de jornalismo popular no estado. Escolas de jornalismo popular, como a Énois, também em São Paulo, igualmente fortalecem esses movimentos comunicacionais, garantindo a jovens dessas localidades o acesso aos conhecimentos jornalísticos e tecnológicos a fim de que ponham em prática o seu direito de se comunicar socialmente.

Em relação às semelhanças com suas raízes históricas, as experiências atuais de jornalismos populares asseguram na prática o direito à comunicação de camadas sociais historicamente excluídas dos espaços de poder. Possibilitam que os moradores de comunidade não só acessem informações e conhecimentos, mas também os produzam, democratizando em certa medida o circuito midiático e político. Fazem parte, portanto, de um processo maior de organização e mobilização da luta popular na busca pela conquista de direitos básicos aos setores empobrecidos, como vida digna, educação, saúde, respeito. Além disso, comumente têm dificuldades para se manter ativas no circuito comunicacional, em virtude, dentre outras questões, das dificuldades para angariar capital financeiro. ­ Segundo Cláudia Nonato (2018), é comum os arranjos de jornalismo alternativo de maneira geral desenvolverem práticas colaborativas como tentativas de sustentação econômica.

Se, no cenário anterior ao digital, estas articulações em rede foram possibilitadas sobretudo com o apoio da Igreja Católica e das universidades latino-americanas, no cenário digital, práticas de crowdfunding (financiamento coletivo) e “inúmeras instituições de interesse privado (universidades, fundações, bancos, conglomerados de mídia) acompanham e incentivam financeiramente algumas dessas iniciativas, fato que demonstra o potencial e importância desses grupos” (NONATO, 2018, p. 2). As origens dos novos mecenas parecem também indicar a principal diferença entre os jornais populares atuais e os dos anos 1970: os contextos históricos em que se inserem. Dessa forma, verifica-se que raras são as iniciativas de jornalismos populares atuais que se pautam pela ruptura com o capitalismo, como foi verificado no contexto da ditadura militar, ainda que estremeçam constantemente o status quo na busca por consolidar um modelo de desenvolvimento brasileiro mais humano e o combate ao autoritarismo social que hierarquiza e violenta as relações sociais, sobretudo a partir de três categorias: raça, gênero e classe social.

Autoritarismo social este que, muitas vezes, é reproduzido pela grande imprensa em virtude de questões ideológicas e econômicas, bem como culturais, uma vez que a redação jornalística convencional é predominantemente “branca, de classe média, e fala para brancos, de classes média e alta (…)”, como afirmam as pesquisadoras Andressa Kikuti e Janara Nicoletti em comentário publicado no objETHOS, ao tratar da pouca diversidade nas redações e da sua relação com a invisibilidade de certas questões que afetam significativa parcela da população brasileira, como o racismo.

A relevância do jornalismo popular contemporâneo avança na medida em que se consolida como canal de expressão da parcela da população excluída do cenário midiático. E ainda que sejam as comunidades pobres o seu principal público, intenta alcançar a esfera pública midiática e o poder público para a resolução das privações sociais e o avanço cultural democrático. Colabora ainda com o fortalecimento da luta contra-hegemônica como um todo, ao integrar pautas de outros movimentos sociais – outrora apartadas do seu debate -, por entender que as violências estruturais sofridas pelos moradores de favela ocorrem não só pela chave da pobreza, mas da cor e do gênero. Em última instância, o jornalismo popular contemporâneo complementa as novas lutas por cidadania que intentam não só fortalecer o Estado democrático, mas também, e especialmente, criar dentro da nossa sociedade uma cultura democrática de respeito à diversidade e à dignidade humana.

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REFERÊNCIAS

DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, p. 103-118, 2004.
NONATO, Cláudia. O perfil do jornalista das periferias de São Paulo: resultados iniciais. In: 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Anais… Joinville: Intercom, 2018.
PERUZZO, Cicilia. Aproximações entre a comunicação popular e comunitária e a imprensa alternativa no Brasil na era do ciberespaço. Galáxia, n. 17, p. 131-146, jun. 2009.

Publicado originalmente no site objETHOS.

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Juliana Freire Bezerra é pesquisadora do objETHOS e doutoranda do PPGJOR/UFSC.