Não é incomum ouvir que “o” jornalismo (qual jornalismo?) seria sinônimo de um “mercado de ideias”, essa entidade mística e abstrata preenchida por uma diversidade de valores. Mediada pelos jornalistas, diferentes pesos comuns representariam parcelas de vozes da sociedade.
Ao tratar de valores no âmbito ético, é relativamente comum forjar seus processos históricos e políticos sob uma pretensa naturalização da normatividade. Ora, valores envolvem disputas e correlação de forças. Valores dominantes são enunciados por sujeitos em posição de poder, majoritariamente. São universais quando são ocidentais, por exemplo, ignorando qualquer outra perspectiva. E são, ainda, prescrições, quando normatizam e orientam aquilo que seria considerado como uma “boa conduta”. Um jornalismo “correto”, sob a perspectiva hegemônica, é aquele que ouve os dois lados e dá mesmo peso a essas diferentes visadas. A questão que abordo em seguida é que nem todas ideias caberiam nesse suposto mercado de vastas ofertas do jornalismo.
Em sua coluna mais recente, o jornalista Maurício Stycer relaciona a pretensa pluralidade de ideias com a propagação de desinformações. Sua crítica é direcionada principalmente ao quadro “O Grande Debate”, exibido pelo canal CNN, e que popularizou figuras como a advogada criminalista Gabriela Priori e o bacharel em direito Caio Coppolla.
Priori participou durante apenas duas semanas como debatedora do programa até pedir demissão. O motivo: se dizia “constrangida” pelo nível dos debates – nos quais, com frequência, articulava argumentos de forma clara e concisa, ao contrário de seus companheiros de programa. A advogada ainda alegou que não poderia legitimar o “achismo” sendo “equiparado ao conhecimento científico, nem contribuir para acirrar a polarização”.
Para Stycer, o pretenso debate da CNN não passava de uma caricatura. Pouco importa qual pauta estava sendo discutida, já que a personificação dos debatedores era mais importante. Trata-se de um duelo retórico “que muito dificilmente vai mudar a opinião de algum espectador, mas que gera polêmica e vídeos com memes na internet – o que parece ser o principal interesse do canal”.
A “memetização” do debate político, de fato, parece uma constante nos últimos tempos. É comum encontrar edições de vídeos, inclusive do próprio programa da CNN, onde um debatedor “janta” o outro – o verbo é a nova gíria que substitui o antigo “lacre”, em referência àquele que derrota seu adversário numa discussão.
O problema é que tais manipulações de vídeo acionam sentidos diferentes para bolhas diferentes. Se, por um lado, certo grupo ligado a determinado espectro político considera que Prioli acabou com seu adversário, o mesmo debate, com uma e outra edição diferente, pode ilustrar o mesmo debatedor outrora “derrotado” como alguém viril, corajoso, que ousou enfrentar a advogada criminal. Não importa se o conteúdo dito por um dos lados carece de qualquer correlação com os fatos. A palavra-chave é uma só: performance.
Terra, porta-voz do terraplanismo
Em texto publicado ontem, João Filho, colunista do Intercept Brasil, observa o mesmo problema nas repetidas participações de Osmar Terra (MDB) em programas de TV e rádio. O ex-ministro da Cidadania no governo atual se tornou uma espécie de porta-voz do negacionismo da ciência, já que é contrário ao isolamento social durante a pandemia.
Isso não o impediu de ser convidado para discutir o tema em três canais televisivos durante uma semana, observa Filho. É como se a posição do político – no outro extremo daqueles que defendem a quarentena – pudesse qualificar e “equilibrar” o debate público. Exceção à regra foi a sua participação nessa entrevista para a Rádio Gaúcha, onde o jornalista Daniel Scola exerce dignamente seu papel de mediador e contesta várias mentiras ditas pelo entrevistado.
A tática de Terra não é nova na indústria do lobby. Segundo Filho, para aqueles que atuam como lobistas, importa estar presente no espaço midiático e disseminar dúvidas sobre o que seriam os supostos consensos de uma sociedade – como a ciência, por exemplo. Ser desmascarado por outro debatedor envolvido na discussão é secundário. Como afirma o autor do texto, “minutos após os debates, vídeos editados com os melhores momentos de Osmar Terra ‘lacrando’ debatedores já estavam circulando no WhatsApp dos brasileiros”.
Daí a singela contribuição do jornalismo na cultura e disseminação das fake news, em uma curiosa relação que beira a síndrome de Estocolmo.
Nas raízes do problema
Mas, afinal, quais ideias cabem na metáfora do jornalismo como “mercado de ideias”? Ele abrigaria todo e qualquer tipo de comportamento, inclusive aqueles que atentam para a democracia e negam a ciência? A julgar pelo que vimos anteriormente, sim. E isso não é de se espantar: faz parte das raízes históricas e culturais que sedimentaram uma normatividade específica para um modelo dominante de jornalismo.
A excelente tese de doutorado de Phellipy Jácome, professor da UFMG, nos ajuda a entender melhor esse processo. Falar de jornalismo como “mercado de idéias” é tomá-lo pela perspectiva liberal norte-americana. Mais especificamente, de prescrições ideárias sobre imparcialidade, objetividade e equilíbrio, por exemplo. São “valores” supostamente universais, de um suposto “modelo” americano, que carrega em si uma normatividade – e, portanto, uma fantasia, intrínseca à toda norma.
Jácome está preocupado em desvelar os processos históricos que originam aquilo que entendemos como valores canônicos e “essenciais” do jornalismo. Ancorado na objetividade, os processos discursivos modernizadores sobre o jornalismo encontram seu ponto fulcral na separação entre purificação e tradução – entre observador e observado, natureza e sociedade. Contudo, “esse modelo é mais prescritivo que descritivo, fixando-se como uma proposta excludente de como o jornalismo deveria ser”, escreve ele, na página 105 de sua tese. A impossibilidade de separação entre essas duas zonas acaba implicando um jornalismo que está-por-vir. Um jornalismo sempre refém de sua própria normatividade.
Daí que a valorização desse “novo tipo de jornalismo” justifica diversas reformas em jornais de todo o mundo a partir do século XX. As raízes dessa transformação convergem para um discurso pautado “pela emulação dos ideais estadunidenses de progresso, liberdade de imprensa e livre mercado de ideias, tendo por meta atingir uma escala de objetividade supostamente já conquistada pelos diários dos EUA”, afirma Jácome, na página 108.
O problema é justamente partir desses pressupostos como se eles fundamentassem parâmetros do que seria um “bom” jornalismo. Forja-se, assim as diversas camadas de processos históricos dessas disputas. No limiar da questão, é possível inclusive duvidar da ligação aparentemente tão óbvia entre jornalismo e democracia. “Afinal, ainda que desejemos que as práticas jornalísticas aperfeiçoem os debates democráticos”, diz Jácome, em suas conclusões na página 243, “é necessário reconhecer que, muitas vezes – e especialmente no contexto latino-americano –, o jornalismo também pode ser, na verdade, ‘fundamental para os golpes’ e danos à democracia. Assim, é necessário objetar – por mais nobres que pareçam ser – aspirações incapazes de considerar o espaço de experiência, já que elas não podem alterar nada para além de reformular, como promessa de um futuro distante e fugidio, uma ação jamais praticada”.
Sylvia Moretzsohn, em entrevista concedida à doutoranda Julia Freire Bezerra – ambas integrantes do objETHOS –, toca na mesma questão quando afirma que o jornalismo como pedra angular da democracia só é possível “em tese”. Ela detalha que o processo de colonização do Brasil já origina uma imprensa sob os pilares da censura e do oficialismo, com notícias favoráveis à Corte. “Como é que você pode cobrar do jornalismo o fortalecimento dos ideais democráticos?”, questiona a pesquisadora. “É por isso que a gente erra muito quando fala sobre o jornalismo brasileiro pegando esses conceitos e tentando adaptar, tentando verificar se eles são ou não cumpridos”.
Ideais como “equilíbrio” ou “objetividade” acabam orientando aquilo que se entende por jornalismo “ético”, “correto” ou, indo além, como o único possível. Prescrições como essa colocam no mesmo bojo de ideias da prática jornalística um debate entre dois supostos extremos, sob o pretexto de representar a “polarização” da sociedade, sem distinção de pesos. Em síntese: são um palanque gratuito para fontes negacionistas.
Quando o jornalismo fortalece a gramática neoliberal
O perigo de atos como esse é contribuir ainda mais para a desinformação – sendo que o seu combate é, hoje, mote e slogan de diversas empresas jornalísticas, ironicamente. Se “ouvir os dois lados” é um imperativo ético para o jornalismo, foi justamente esse condicionante que lobistas aproveitaram para obter espaço na mídia.
Em artigo assinado para a revista piauí, a pesquisadora Tatiana Roque observa que esses profissionais são treinados para polemizar com cientistas. Mais uma vez, não se trata de algo novo: é uma tática de propaganda já utilizada pela indústria do cigarro e retomada pelo aquecimento global. Em ambos os casos, a tentativa é “disfarçar como polêmica o consenso científico”, tanto nas doenças causadas pelo tabaco como na suposta controvérsia entre climatologistas, que nunca havia existido até então.
O que explica o consumo de vídeos editados, onde um negacionista como Osmar Terra “janta” seu adversário, faz parte de um quadro mais geral. Para Roque, o ceticismo generalizado da população rejeita o sistema político como um todo – “não é que tantas pessoas acreditem no que eles dizem, é que boa parte delas não se importa”. Daí o vácuo a ser preenchido por lideranças conservadoras, dialogando com outro sentimento que acompanha o ceticismo – o deboche.
Paradoxalmente, se o ceticismo seria a pré-disposição à dúvida – algo que poderia soar como positivo –, ele ganha outros contornos no quadro de uma crise epistêmica do neoliberalismo. Dada essa condição, a tática se torna ainda mais eficiente ao apelar para a “controvérsia” e a “polêmica” em torno do que outrora seriam consensos científicos, por exemplo.
É por isso que a antropóloga Letícia Cesarino entende que a agenda neoliberal também afeta a estrutura epistêmica da sociedade. No caso particular da Covid-19, escreve a autora, temos o ineditismo de uma pandemia que coincide com outra, a da desinformação. Ambas se replicam rapidamente no contexto da pós-verdade, que opera com uma “necessária redução de complexidade – afinal, ninguém consegue viver no ruído, ou no caos informacional”. Para a antropóloga, a causa dessa redução seria antes a produção de bolhas políticas do que necessariamente a falta de confiança em sistemas de peritos, como os jornalistas.
Recorrendo a outras estudos, Cesarino afirma que a visão epistêmica neoliberal da pós-verdade teria como principal efeito um outro sinônimo. “Verdade iguala-se a eficácia, e a sociedade passa a ser vista sob essa mesma lógica performativa: apenas os merecedores e os produtivos vicejarão”.
Portanto, não há nenhuma sutileza ou mistério na metáfora do jornalismo como “mercado de ideias”. Ela é exatamente o que se propõe: o atravessamento da gramática neoliberal do mercado como fundamento normativo do jornalismo. Muito embora as normas sejam históricas e participantes de processos de disputa, elas são frequentemente entendidas como estanques, apriorísticas, como o “único modo possível de ser” do “jornalismo”, no singular. Quando o valor de verdade é tomado como valor de eficácia, produção e performance, o jornalismo – um deles, o dominante – contribui exatamente para a sua antítese, a antidemocracia.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Referências
BEZERRA, Juliana Freire. Imprensa brasileira historicamente fragiliza a democracia. Entrevista com Sylvia Moretzsohn. Estudos em Jornalismo e Mídia, v. 16, n. 2, 2019.
CESARINO, Letícia. Coronavírus como força de mercado e o fim da sociedade. antropoLÓGICAS, 2020. Disponível em: https://www.antropologicas-epidemicas.com.br/post/coronavírus-como-força-de-mercado-e-o-fim-da-sociedade. Acesso em: 17 mai 2020.
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Dairan Paul é doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS.