O jornalismo é um lugar de escolhas. Uma pauta que se transforma em texto é dotada de decisões. Pessoas, dados, ideias se articulam a partir de uma perspectiva de mundo e, desse modo, cada escolha jornalística é política e é salutar que esteja amparada por uma ética profissional.
Neutralidade, imparcialidade e objetividade são valores da teoria clássica do jornalismo. Eles estão inscritos em determinado contexto histórico e dizem respeito a uma perspectiva sobre o jornalismo que se tornou hegemônica. Como toda tradição, ela nasce de uma necessidade histórica que necessariamente não é determinante e está sujeita ao questionamento.
Um olhar para a história do jornalismo vai nos mostrar que a prática chegou antes da teoria, mas não sem um conjunto de condições estabelecidas por relações de força. Nilson Lage (2001) escreveu sobre as mudanças geradas pelo capitalismo na ordem social e como elas modificaram as formas de fazer o jornalismo. Se em dado momento histórico as opiniões e interpretações eram privilegiadas nos jornais, com a consolidação da burguesia, o papel do jornal passou a ser outro – ou, pelo menos, foi assim no mundo ocidental.
Não era mais possível que o jornal fosse uma ferramenta revolucionária, atacando o sistema vigente, porque a classe revolucionária anterior havia se estabelecido como classe dominante. Também era necessário lidar com um novo público insatisfeito, mas com muita necessidade de adquirir conhecimento. De acordo com Lage (2001), era preciso buscar novas formas de reiterar a ideologia na produção de informação.
Portanto, a subjetividade da análise crítica foi descredibilizada enquanto valores como neutralidade, imparcialidade e objetividade se tornaram a base de um jornalismo supostamente equilibrado, que buscava reforçar a ideologia dominante de uma forma velada.
Rudiger (2017), coloca que os esforços de reflexão teórica sobre o jornalismo tiveram pouco lugar no início da escola norte-americana – que é a predominante, ainda hoje, no ensino de jornalismo no Brasil. Os princípios como neutralidade, imparcialidade e objetividade nasceram em meio à profissão sem muita formulação filosófica. Até o fim dos anos de 1960, a centralidade estava “na exploração do negócio da formação e treinamento de mão de obra”, e os esforços para entender o jornalismo como um campo de pesquisa acabaram diluídos nas pesquisas em comunicação.
Sobre as relações entre história e teoria do jornalismo, é possível encontrar referências no capítulo “Perspectiva histórica e teórica do jornalismo”, na dissertação que apresentei ao PPGJor/UFSC, em 2019.
Por que, afinal, contestar os valores clássicos do jornalismo?
Dentro da perspectiva adotada neste texto, o jornalismo se estabelece em nível de uma verdade factual, no entanto, não é capaz de abarcar uma verdade cristalizada. O texto jornalístico não é algo fechado em si mesmo, ele é datado, requer escolhas e carrega consigo ideologias.
Valores como neutralidade e imparcialidade são aqui contestados porque se entende que jornalistas são seres políticos participantes da realidade social e que têm como referência ética para a sua atividade a defesa dos direitos humanos, portanto, incapazes de atingirem a neutralidade.
Como não são entes neutros, jornalistas sujeitam sua suposta imparcialidade aos discursos presentes nos textos que produzem, mesmo que de forma não tão consciente. Ao fazer escolhas, partem de antecedentes como sua localização no mundo e a realidade material que lhes afeta. Logo, ao pensar o jornalismo como forma social de produção do conhecimento, é necessário considerar o fazer jornalístico a partir de uma práxis consciente.
Com essas considerações em vista, a objetividade se destaca como um valor necessário ao jornalismo, mas que se relaciona intrinsecamente com a subjetividade. É nesse amálgama que se constitui uma práxis jornalística mais adequada à realidade histórica e à condição atual do jornalismo.
O conhecimento produzido pelo jornalismo seria, então, o resultado de uma práxis jornalística fundada na relação entre objetividade e subjetividade, com um método de trabalho ancorado em valores éticos como: transparência metodológica e política; responsabilidade com fontes e público afetado; equivalências justas entre discursos presentes no texto; verdade factual como elemento singular referente; e a ampliação das posições em jogo na sociedade estabelecendo uma discussão política sobre elas.
Que objetividade e subjetividade são essas?
Uma objetividade que resguarda consensos sociais em defesa dos direitos humanos e elabora a partir de elementos referenciais apontados pela ciência – outra forma de produção do conhecimento -, mas não sem levar em consideração as disputas de ideias no meio científico.
É também uma objetividade que atua a partir da verdade factual entendendo que ela pode ser lida a partir de diversos pontos de vista. E trata-se até mesmo de uma objetividade semântica, que permite a compreensão daquilo que se diz, em um texto claro, coerente e coeso.
A grosso modo, a subjetividade adotada nessa reflexão é aquela que expressa valores morais e éticos, assim como relações simbólicas e discursivas presentes na mentalidade de jornalistas e em seu fazer textual.
É uma subjetividade que denota as ideologias e interesses que permeiam a realidade de jornalistas – individual e coletivamente – e que expressa a relação do indivíduo com a realidade objetiva – material – histórica. Ou seja, a decisão que jornalistas tomam frequentemente em seu fazer diário é uma ação subjetiva e, portanto, política.
Uma práxis jornalista pensada a partir dessa referência é uma ação consciente das condições objetivas em relação dialética com a subjetividade humana, entendendo a disputa da hegemonia como um processo histórico.
Os valores que sustentaram o jornalismo, histórica e socialmente, são incapazes de suportar o debate de novos valores que o conhecimento humano produzido pelo jornalismo precisa encarar. Enfrentamos questões prementes para a humanidade que vão desde as questões climáticas à defesa da democracia. Elevamos socialmente o debate sobre diversas causas que implicam os direitos humanos, passando pelas questões de gênero, raciais, migratórias e de valorização de identidades invisibilizadas historicamente.
Além disso, o impulsionamento pelas redes sociais de um jornalismo de práxis consciente, publicado exclusivamente na internet, coloca em destaque um tipo de conhecimento jornalístico que assume posições, mas sem abrir mão da verdade factual e sem cair em subjetivismos improcedentes. Um jornalismo com métodos transparentes de apuração, incluindo a diversidade de posições e de fontes presentes na realidade histórico-social.
Enfim, o que se defende é uma práxis jornalística, resultado de uma ação prática calcada no irrepetível/singular (GENRO FILHO, 2017) que, à luz de uma consciência crítica, relaciona objetividade e subjetividade, combinadas à perspectiva histórica e à análise concreta da realidade: uma práxis que produz o conhecimento jornalístico e que reconhece seu potencial transformador.
REFERÊNCIAS (citadas no texto)
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2012.
LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 3. ed. Florianópolis: Insular, 2001.
RÜDIGER, Francisco. Origens do pensamento acadêmico em jornalismo: Alemanha, União Soviética e Japão. Florianópolis: Insular, 2017.
PEIXOTO, Clarissa do Nascimento. Hegemonia, Jornalismo e Conhecimento: possíveis leituras sobre práxis contra-hegemônica. 143 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, Departamento de Jornalismo, UFSC, Florianópolis, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/mrx9t3ze. Acesso em: 8 dez. 2024.
REFERÊNCIAS EXTRAS (que subsidiaram este texto)
PEIXOTO, Clarissa; LIMA, Samuel Pantoja. Jornalismo, Conhecimento e Pensamento Marxista: de Antonio Gramsci a Adelmo Genro Filho. Revista Eletrônica Internacional de Economia Política da Informação da Comunicação e da Cultura, [S.L.], v. 25, n. 2, p. 133-148, 23 out. 2023. Disponível em: https://tinyurl.com/4ws7vvmx. Acesso em: 18 nov. 2024.
PEIXOTO, Clarissa do Nascimento; LIMA, Samuel Pantoja. Jornalismo, hegemonia e conhecimento: leituras sobre uma proposta de práxis contra-hegemônica em Antonio Gramsci e Adelmo Genro Filho. Líbero, São Paulo, v. 24, n. 49, p. 27-42, dez. 2021. Disponível em: https://tinyurl.com/ycnczzyz. Acesso em: 18 nov. 2024.
Texto publicado originalmente em objETHOS.
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Clarissa Peixoto é Jornalista, mestra em Jornalismo pelo PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS