Publicado originalmente no site objETHOS
Jornalismo de peito aberto. Esse é o slogan do Mamilos, podcast semanal criado há cinco anos por Juliana Wallauer e Cris Bartis. De acordo com a descrição no site do programa, “Mamilos discute os temas polêmicos apresentando diversos argumentos e diferentes visões para que os ouvintes formem sua opinião de maneira crítica. Nossa busca, com curiosidade e humildade, é desenvolver um jornalismo construtivo, de soluções, não violento, com narrativas restaurativas. Um jornalismo de peito aberto, mais interessado em construir pontes do que em provar pontos”. Além de receber doações de ouvintes, o Mamilos tem patrocínio do Banco Bradesco.
No último dia 7 de fevereiro, o podcast foi duramente criticado pelo episódio #238, que tratou de educação financeira e teve como convidados os youtubers Thiago Nigro, do canal Primo Rico, e Nathália Rodrigues, do canal Finanças com a Nath. Já no início, a apresentadora os introduz como “primo rico e prima pobre”. E, no decorrer do programa, Juliana e Cris monopolizam o debate com seus próprios exemplos – quando dão espaço, é para Thiago Nigro. Nathália faz pouquíssimas considerações. Para compreender o tamanho desse problema, é preciso conhecer os dois youtubers e o abismo que os separa. Thiago Nigro, cujo canal tem 3,17 milhões de inscritos, é um jovem branco que dá “dicas” como “junte 195 mil reais em 4 anos!”.
Se por meio do discurso de Nigro parece fácil enriquecer, a realidade é bem diferente. Em julho do ano passado, ele leiloou um apartamento por causa de uma dívida de 1,7 milhão de reais.
Nathália Rodrigues é uma jovem negra, estudante de Administração, cujos vídeos dão dicas de educação financeira para a população de baixa renda. Criado há seis meses, seu canal tem atualmente 76,3 mil inscritos e orientações sobre, por exemplo, “como limpar seu nome”. Aliás, o Primo Rico deveria assistir a esse vídeo.
Assim, não é difícil supor que o programa, ao invés de construir pontes, evidenciou a disparidade de classe, dando mais voz ao lado mais forte. Em resumo, uma negra silenciada por um branco, com o patrocínio do Bradesco. Vejam alguns exemplos da repercussão no Twitter:
Ao comentar o ocorrido, Nathália acrescentou que não sabia quais seriam os convidados e nem teve acesso à pauta do programa. “O embate me deixou muito desconfortável durante a gravação, tanto que eu nem pude concluir meus raciocínios como gostaria. Houve comentários desnecessários e que deram dupla interpretação”.
Quando ouvir o outro lado não é uma opção
A proposta do Mamilos parte da necessidade de promover uma comunicação não violenta, conceito que recentemente tem sido bastante discutido. Nesta entrevista, Dominic Barter, especialista no tema, chama atenção para o papel da imprensa como mediador do debate público em tempos de polarização.
“A imparcialidade se torna um ideal abstrato que você é forçado a seguir. E você se torna cego. ‘Ah, mas eu preciso ouvir alguém que não acredita em crise climática. Se não, não sou equilibrado’. Daí publica quinze minutos de alguém que fala em nome da maioria da opinião científica do mundo e quinze minutos de alguém que fala qualquer coisa que inventou na cabeça ontem!”.
Para ele, a imprensa está numa perseguição obsessiva por uma neutralidade que não existe. Assim, Juliana e Cris acabam por interpretar erroneamente o conceito de comunicação não violenta, caindo numa falsa simetria que só beneficia um dos lados. Não raramente, o lado opressor. Lembram quando a Folha contratou o Kim Kataguiri como colunista? O discurso de “dar voz ao outro lado” era o mesmo. Pouco tempo depois, Kataguiri foi demitido, cheio de processos judiciais.
Ter o que dizer deve ser condição essencial para se ouvir o outro lado. O respeito às regras democráticas também. Não existe empatia com alguém que pode iludir pessoas prometendo dinheiro fácil e muito menos deve-se dar o microfone a ela. O jornalismo que usa o argumento do equilíbrio para isso é, no fim das contas, cínico.
O erro na correção do erro
Após a repercussão nas redes sociais, o Mamilos assumiu que errou:
Editar o episódio e inserir logo na introdução a admissão do erro e sua contextualização foi uma ótima ideia. No rádio e na TV, são raros os casos em que a errata se conecta com a informação original. Como a internet possibilita isso, essa seria a melhor estratégia para minimizar os efeitos do ocorrido.
No entanto, poucas horas depois elas voltaram atrás e, alegando ter sido um pedido da própria Nathália, tiraram o programa do ar. Ou seja, tentaram apagar o rastro de algo que deveria permanecer acessível, de modo a promover discussões importantes sobre neutralidade e a discutível necessidade de ouvir os dois lados.
Quem souber do erro hoje, por exemplo, não conseguirá se inteirar completamente do que aconteceu, simplesmente porque a informação foi excluída. Por mais que as apresentadoras retomem o assunto num próximo programa, o conteúdo original foi removido.
O correto gerenciamento de crise exigiria que Juliana e Cris negociassem com Nathália para que a primeira solução fosse mantida. Deletar a memória do acontecimento é mais prejudicial do que uma repercussão negativa, pois impede o acesso a ele e os vários aprendizados a partir do erro.
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Lívia de Souza Vieira é doutora em Jornalismo e pesquisadora associada do objETHOS.