Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Tudo pela audiência: o caso da Record e as concessões éticas no Jornalismo

(Imagem: Carlos López por Pixabay)

A obsessão pela audiência pode levar os veículos de comunicação a fazerem concessões éticas e editoriais que comprometem a qualidade, a precisão e a credibilidade do jornalismo, valores definidores da atividade. Essas posturas conduzem a um desvio dos princípios fundamentais da profissão, com o afastamento da busca pela verdade e da responsabilidade social, deixando de priorizar a informação de interesse público. Com forte presença no cenário nacional, operando através de sua rede de televisão, além de rádios, portais de notícias e outros veículos, o Grupo Record configura-se como um dos maiores conglomerados de mídia do Brasil, tendo significativa expansão nos últimos anos. Sua atuação, entretanto, é marcada por uma série de controvérsias. Tais constatações integram parte dos resultados preliminares de pesquisa de pós-doutorado em andamento, que apontam nesta direção.

Em caso recente de ampla repercussão, o programa Balanço Geral Bahia, da Record TV Bahia, tornou-se centro de um escândalo nacional sobre a conduta de jornalistas e o uso indevido de doações via Pix, envolvendo sérias questões sobre a ética jornalística. Em abril de 2022, surgiram denúncias de desvios de doações feitas por telespectadores, supostamente destinadas a ajudar pessoas vulneráveis apresentadas nas reportagens. A investigação interna e as apurações policiais revelaram o envolvimento de funcionários do programa, com a quebra do registro bancário dos suspeitos e a constatação de movimentações financeiras superiores a R$ 3,4 milhões em menos de um ano. O escândalo resultou em demissões e o relatório final das investigações apontou o repórter Marcelo Castro e o editor-chefe Jamerson Oliveira como líderes de um esquema criminoso conhecido como “escândalo do pix”.

Com taxas de audiência significativas para o horário do início da tarde, o programa Balanço Geral (BG) é produzido e transmitido regionalmente por afiliadas da Record em diferentes estados brasileiros. O BG tem pautado um modelo de jornalismo baseado sobretudo nas transmissões ao vivo, influenciando diretamente modos de fazer e dinâmicas de telejornais de referência. Cada afiliada tem sua própria versão do programa, adaptada para os interesses do público local, mas há uma convergência de abordagem focada em criminalidade, assistencialismo e dramas humanos como eixo central da pauta. Esse conteúdo se reproduz como marca característica do BG.

O tom de entretenimento e a dramatização muitas vezes em detrimento da responsabilidade jornalística têm sido apontados como elementos de sua caracterização (Paiva, Krüger, Negrini, 2018). Há ainda uma problemática articulação e engajamento que se manifestam de forma visível por parte de seus apresentadores e nos enquadramentos adotados no âmbito político-partidário… Para ficar em alguns dos casos mais conhecidos, pode-se mencionar os apresentadores José Luiz Datena e Ratinho, com passagens pela condução do programa em São Paulo e Curitiba, respectivamente, e suas disputas por cargos eletivos. Santa Catarina não está incólume a esse cenário. O apresentador Hélio Costa, que por anos esteve à frente da apresentação do Balanço Geral na capital, foi eleito deputado federal pelo Partido Republicano Brasileiro em 2018, escancarando as relações políticas num grupo que frequentemente se coloca como “imparcial”.

Exemplos que refletem o posicionamento editorial do grupo ND

O programa Balanço Geral também é uma das principais apostas do grupo ND, vinculado à Record, em Santa Catarina. Em Blumenau, terceira maior cidade do estado, a 130 quilômetros da capital Florianópolis e com uma tradição importante no mercado da comunicação catarinense, o grupo soma mais de 30 profissionais só no setor de Jornalismo, incluindo repórteres, produtores, apresentadores, editores, cinegrafistas e equipe do Portal ND+. A emissora possui mais de três horas de programação ao vivo com conteúdo regional, através dos telejornais Balanço Geral Blumenau, Tribuna do Povo Blumenau e programa Ver Mais Blumenau, com foco em beleza, saúde, comportamento, moda e gastronomia. Na programação da emissora, o âncora do programa se tornou conhecido como o “apresentador que dança no fim do jornal na sexta-feira”, como observou a jornalista Joyce Thays Moser (2023), levantando discussões sobre limites éticos e a conduta esperada de um apresentador de telejornal.

Numa explícita demonstração da tentativa de capturar público, tais recursos e performances como “a dancinha do âncora” demonstram a guerra pela audiência, mas é necessário questionar essas condutas sob pena de comprometer a própria credibilidade jornalística. Não se pode negar que essas estratégias têm apelo e muitas vezes aprovação popular, encontrando respaldo junto às audiências, basta ver os comentários e repercussões em torno desses movimentos nas redes sociais. Entretanto, há de se ponderar sobre essas posturas sob o risco de comprometer o futuro do próprio jornalismo, esvaziando o sentido da profissão. Os limites da ética no jornalismo são definidos por um conjunto de princípios e normas que visam garantir a integridade, a veracidade e a responsabilidade da prática jornalística.

Esses limites são essenciais para manter a confiança do público e assegurar que o jornalismo cumpra seu papel social de informar com precisão. Isso não quer dizer entretanto que o jornalismo precisa necessariamente assumir um engessamento de seriedade e sisudez, como no passado. Outro ponto sensível são os comerciais ao vivo. No caso de Blumenau, por exemplo, ao final de cada bloco, o BG faz merchans, como forma de gerar lucro para a empresa, um risco por comprometer a independência esperada da cobertura e o vínculo assumido com uma marca/produto.

Os exemplos aqui mencionados ilustram dilemas complexos que exigem esforços de pesquisa na tentativa de compreensão de tais fenômenos. O grupo concorrente – NSC (antigo Grupo RBS, afiliado à Rede Globo) – foi amplamente estudado sob diferentes vieses (Aguiar, 2019; Christofoletti, 2016; Giovanaz, 2015), mas ainda cabe entender melhor a dimensão das novas configurações midiáticas com o crescimento do grupo ND no estado.

Contexto histórico da Record no Brasil e do Grupo ND em Santa Catarina

Em meio às transformações com as novas dinâmicas de produção, distribuição e consumo de informações, o Grupo Record tem se consolidado como um dos maiores e mais influentes players no setor de comunicação do país. Controlado pela Igreja Universal do Reino de Deus e liderado pelo bispo Edir Macedo desde 1989, foi frequentemente mencionado em discussões sobre benefícios durante o governo de Jair Bolsonaro. O Grupo Record, que inclui a Record TV e outros veículos de comunicação, recebeu vantagens indiretas ou diretas durante o mandato de Bolsonaro, como distribuição de verbas publicitária, enquanto a Rede Globo, tradicionalmente a maior recebedora, viu uma redução proporcional . Outro ponto observado foi uma cobertura passiva e favorável ao governo Bolsonaro com espaço exclusivo na mídia por parte do grupo (Porto, Neves, Lima, 2020).

Alinhado ao panorama nacional, o mercado jornalístico de Santa Catarina assistiu a um movimento de expansão do Grupo ND (Notícias do Dia), afiliado da Rede Record no estado. Lançado como um novo conglomerado de mídia em dezembro de 2019, substituindo o antigo Grupo RIC (Rede Independência de Comunicação), anteriormente denominado como grupo Petrelli, o Grupo ND surgiu como mera mudança de nome fantasia. Com a promessa de produzir conteúdo “noite e dia”, como sugere a sigla, abrange diferentes plataformas como jornal impresso, televisão, revistas e portal de internet, incluindo veículos como a NDTV, o Portal ND+ e o jornal ND, o único impresso diariamente na região da Grande Florianópolis.

Em Santa Catarina, o Grupo ND compete diretamente com o Grupo NSC e tem uma presença significativa no estado. É conhecido principalmente por sua atuação em televisão e jornal impresso. A NDTV tem uma ampla cobertura e audiência significativa em diversas regiões do estado. São seis afiliadas da emissora espalhadas pelo território catarinense. Com sede em Florianópolis, tem afiliadas em Chapecó, Criciúma, Blumenau, Joinville, Itajaí e Florianópolis, além das sucursais de Tubarão, Caçador, Balneário Camboriú e Rio do Sul. A empresa também comanda a operação da Record News local.

Mário José Gonzaga Petrelli (1935-2020) é fundador do Grupo ND em Santa Catarina e também do Grupo RIC no Paraná, e aparece lembrado nos veículos do grupo como um protagonista além de um dos pioneiros do setor de comunicação no Sul do país. Sua trajetória como empresário na comunicação inicia em 1975, quando adquiriu duas emissoras de rádio, em Joinville (SC) e Curitiba (PR). Em 1976, comprou a TV Coligadas, de Blumenau, primeira emissora de televisão do estado. Essa foi a base do que se tornou o Grupo RIC, com sedes no Paraná e em Santa Catarina.

O que esperar do futuro?

Em um mercado midiático cada vez mais competitivo, veículos de comunicação frequentemente buscam atrair a atenção do público através de conteúdos mais rápidos, impactantes e, por vezes, sensacionalistas. Mas, essa pressão por exclusividade e audiência pode levar a concessões éticas e a uma diminuição na qualidade jornalística, justamente num momento em que os meios de comunicação lutam para se destacar e manter relevância num ambiente saturado de conteúdos. São muitos os desafios enfrentados pelo jornalismo contemporâneo, quando a busca pela audiência e a pressão pelo imediatismo muitas vezes colidem com os princípios fundamentais e basilares da qualidade jornalística. Encontrar um equilíbrio entre o apelo ao público e a integridade jornalística parece ser um desafio sobretudo em um cenário onde a competição pela atenção do espectador é acirrada, com a disseminação das novas mídias.

Os limites da ética no jornalismo são cruciais para garantir que a informação seja confiável, verificada e equilibrada. Manter-se dentro desses limites é um desafio constante, especialmente em um ambiente de mídia cada vez mais competitivo e pressionado sobretudo por fatores econômicos e políticos. Mas, é essencial que para manter sua função social, o jornalismo preserve seus princípios éticos fundamentais, promovendo o debate público, a consciência social, o contexto e a análise crítica. Desta forma, priorize a veracidade, a contextualização, a credibilidade e a diversidade de pontos de vista para que, de fato, faça a diferença num universo tomado por desinformação, bobagens e sensacionalismo.

Referências

AGUIAR, Itamar. A Operação Zelotes e a venda do Grupo RBS. Florianópolis : Editoria Em Debate/UFSC, 2019. Disponível em: https://editoriaemdebate.ufsc.br/catalogo/wp-content/uploads/ITAMAR-AGUIAR-OPERACAO-ZELOTES.pdf Acesso em: 08 jun, 2024.

CRISTOFOLETTI, Rogério. Ponto de Vista: Quem ganha com a venda da RBS de SC? ObjETHOS, 2016. Disponível em: https://objethos.wordpress.com/2016/03/07/ponto-devista-quem-ganha-com-a-venda-da-rbs-de-sc/ . Acesso em: 08 jun. 2024.

GIOVANAZ, Daniel Piassa. Da conquista do canal 12 à compra do jornal A Notícia – Florianópolis, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/169541?show=full Acesso em: 08 jun. 2023

MOSER, Joyce Thays. Convergência midiática e transmídia: análise dos perfis no Instagram dos telejornais mais assistidos em Blumenau. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo) – Centro de Ciências Humanas e da Comunicação, Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2023. Disponível em: http://bu.furb.br/docs/MO/2023/370030_1_1.pdf. Acesso em: 8 jun. 2024.

PORTO, Mauro; NEVES, Daniela ; LIMA, Bárbara. Crise hegemônica, ascensão da extrema direita e paralelismo político. Revista Compolítica, v. 10, p. 5-34, 2020.

PAIVA, Gustavo Pereira de, KRÜGER, Jesse Xavier, NEGRINI, Michelle. O pacto sobre o papel do jornalismo no Balanço Geral SP: uma análise sob o ponto de vista dos modos de endereçamento. Anagrama, 2018. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/view/145600/140288 Acesso em 08 jun, 2024.

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Magali Moser é jornalista, doutora em Jornalismo pelo PPGJOR/UFSC, pesquisadora de pós-doutorado no INCT.DD/UFBA. É pesquisadora associada do objETHOS