Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A crítica do jornalismo catalisa o debate público

Os vinte anos do Observatório da Imprensa marcam um período importante na história do jornalismo nacional. Basta compararmos o que tínhamos em meados da década de 1990 e o que temos hoje. Nosso jornalismo não é necessariamente melhor que antes, mas muito mais avaliado, criticado e discutido. E isso se deve também ao papel que o OI ocupou nesse curto período: um instrumento de aproximação do jornalismo com os públicos. Sim, porque embora veículos e jornalistas convivessem no mesmo espaço que as audiências, eram observados à distância, tidos como personagens distintos e estrangeiros à vida cotidiana. A forma como Alberto Dines, Carlos Vogt, Luiz Egypto e os demais fundadores escolheram para moldar o OI foi determinante para atrair textos e reflexões de não-jornalistas, o que permitiu um big-bang na crítica de mídia brasileira.

Nesta série sobre os 20 anos do OI, outros autores já lembraram episódios notáveis da media criticism nacional, como o Jornal dos Jornais, mas foi com o OI que a leitora pode se queixar da cobertura desigual no telejornal; foi com o OI que o estudante pode articular teoria com a prática das coberturas jornalísticas; foi com o OI que repórteres e redatores leram o que algumas parcelas do seu público considerava de seu trabalho. Não se trata, então, de algo trivial. O OI permitiu uma aproximação maior entre quem faz e quem consome jornalismo, isso numa época em que era possível determinar com mais nitidez um lugar e outro.

No mundo, são poucos os exemplos de um dispositivo de avaliação da mídia tão aberto a não-profissionais e que funcione efetivamente como uma arena de debate. Infelizmente, essa discussão ainda é circunscrita a camadas muito estreitas da sociedade, mas se trata de um processo histórico. Em pleno século 21, ainda não faz parte da cultura nacional o entendimento de que comunicação é um direito, e que discutir o jornalismo e a mídia não são prerrogativas exclusivas de seus produtores. Mas o OI e outras iniciativas localizadas – como os observatórios de imprensa das universidades – atuam para familiarizar produtos e serviços jornalísticos daqueles que anteriormente chamávamos públicos.

Academia e mercado

O OI nasceu também com outro traço genético peculiar e muito positivo: surgiu mestiço, com um pé na universidade e outro nas redações. Essa condição permitiu a atração de departamentos de ensino e programas de pós-graduação, de estudantes e professores. E possibilitou que editores e repórteres dialogassem com esses interlocutores numa atmosfera que dissipasse o fosso criado entre academia e mercado.

Em 1998, Victor Gentilli, da Universidade Federal do Espírito Santo, fez um chamamento público para a criação de um coletivo universitário que pudesse expandir a atuação do OI. A Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi) só foi criada em 2005 e chegou a reunir mais de 30 pesquisadores de nove estados brasileiros de todas as regiões. Além disso, motivou o surgimento de iniciativas que atuavam como media watchers regionais, a exemplo do S.O.S. Imprensa, em Brasília, do Monitor de Mídia e do ObjETHOS em Santa Catarina, do Canal da Imprensa e do Plural, no interior de São Paulo, entre outros.

Com mais de uma década de existência, a Renoi atuou em projetos de extensão – fazendo monitoramento de mídia local – e em atividades de pesquisa, promovendo debates em eventos científicos e desenvolvendo produtos científicos, como livros, artigos e textos de análise. A Renoi atua hoje muito timidamente, mas sua relevância não esteve apenas na visibilidade de iniciativas menores de crítica de mídia. Mais importante foi trazer contribuições para um debate sobre atuação profissional, ética jornalística, qualidade e aperfeiçoamento da indústria.

As análises e conteúdos produzidos pelos observatórios acadêmicos da Renoi foram sistematicamente publicados também pelo OI, fortalecendo a iniciativa de Dines e Cia, e trazendo contribuições para os estudos da comunicação e do jornalismo nas universidades brasileiras. Esses reforços se dão nas salas de aula, nos laboratórios e nas ações de extensão à sociedade.

O que ajuda a sustentar conceitualmente os observatórios acadêmicos é que criticar é avaliar, comparar, exercer um olhar analítico que enseje debates sobre qualidades e insuficiências dos veículos e dos profissionais. Neste sentido, a crítica de mídia funciona como instrumento de aperfeiçoamento das práticas e dos processos jornalísticos. Ela pode zelar pela clareza nos textos jornalísticos, pela correção e pela precisão nos relatos; pode contribuir para o equilíbrio nas coberturas, e coibir distorções, ambiguidades e incertezas. A crítica pode exigir do jornalismo a contextualização necessária nos relatos, na tentativa de que o conjunto noticioso seja mais informativo e o público tenha mais condições para compreender os elementos que ajudam a compor a sua realidade. Para além de uma leitura dos meios, a crítica pode exigir compromissos mais do jornalismo com a transparência, o diálogo mais horizontalizado com os públicos, e a busca permanente pelo desenvolvimento social e individual, por meio da defesa dos direitos humanos.

A crítica não se ocupa apenas de questões técnicas, mas também de aspectos éticos, discutindo a conduta dos jornalistas na produção do noticiário, não apenas apontando erros, mas também as boas práticas. A observação sistemática e rigorosa desses media watchers sinaliza deslizes éticos, dilemas e novos impasses para a conduta dos jornalistas. Discutir esses aspectos fornece elementos para a busca do aprimoramento das práticas nas redações e permite ainda mudanças na formação das novas gerações de profissionais.

O que resta?

A Renoi não está propriamente inativa hoje, mas sofre de dificuldades que vão da sustentabilidade dos projetos de observação às mudanças estruturais nos departamentos e cursos de que são originários. O próprio Observatório da Imprensa passa por momentos delicados, de revisão de seu papel no debate público e de busca de formas mais perenes e estáveis de sustentabilidade financeira. Não é à toa que isso aconteça em meio ao turbilhão que chacoalha alguns dos alicerces do jornalismo, como o conhecíamos antes. São tremores de terra econômicos, sociais e, sobretudo, culturais. Uma questão inicial que se impõe é: se o jornalismo vem mudando tanto, a sua crítica também não precisará mudar?

Não é o caso de considerar que os diversos dispositivos de crítica de mídia tenham perdido sua função. Ombudsmen ainda são úteis, observatórios de imprensa continuam sendo necessários, e analistas da mídia são bem-vindos. Mas não será o caso de pensar que a crítica que fazíamos foi assimilada pelos veículos e pelos profissionais, e hoje não repercuta tanto quanto poderia, a ponto de gerar desconforto e ímpeto para promover transformações? Umas perguntas incômodas, das quais não podemos nos esquivar: A sociedade ainda se interessa por uma crítica de mídia? Como retomar o vigor e o entusiasmo de vinte anos atrás, atraindo novos interlocutores? Como sustentar (conceitual e financeiramente) um espaço de crítica numa sociedade disposta a criticar a todos e a não implementar mudanças?

A aflição que essas questões alimenta me faz acreditar que o Observatório da Imprensa ainda tem uma longa trajetória a seguir junto à sociedade brasileira, apontando erros e deslizes da mídia, enaltecendo boas práticas, incitando debates e alimentando um a atmosfera de discussão pública permanente sobre os meios de comunicação e suas relações com os demais atores sociais. Longa vida ao OI e a seus bravos realizadores!

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Rogério Christofoletti é professor de jornalismo e pesquisador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS)