Estou ligado ao Observatório da Imprensa desde outubro de 1996 quando seus idealizadores aceitaram meu convite, em nome da empresa, e ele estreou como parte do conteúdo do UOL, seis meses depois de surgir na internet. Inovador, nasceu cem por cento online, sem se entregar ao suporte papel. Foi pioneiro numa realidade que começava a ser chacoalhada pela disrupção nas comunicações. Ou pior, chacoalhada pela disrupção no próprio jornalismo.
Em duas décadas, vi-o crescer no UOL e ser abatido no UOL, onde eu mesmo fui um dos abatedores. Vi-o ressurgir no concorrente iG e também ser abatido no iG. Vi-o crescer em sua vida fora dos grandes portais e se multiplicar nas redes sociais.
Também o vi crescer no rádio, quando abrigado na Rádio Cultura onde acabou igualmente abatido. Vi-o crescer tanto na TV Cultura quanto na TV Brasil. Vejo-o agora na perspectiva de uma história incomparável, de um trabalho único na complexa arquitetura da crítica da mídia – sem nunca ter-se rendido ao nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura.
Sui generis, o Observatório é “o” veículo de crítica. É o lugar da resistência da análise do jornalismo realizada a despeito do suporte. Daquele jornalismo que pretende vencer a disrupção e se manter independente, abrangente, crítico, investigativo – capaz de mediar os fatos com credibilidade junto ao seu público. Daquele jornalismo eleito sistematicamente pelos leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas que o consomem minuto a minuto, diariamente ou semanalmente, ao escolhê-lo como sua fonte de informação.
Mais importante em tudo isso é que o Observatório tem uma alma. E a sua alma tem um nome: Alberto Dines.
O seu corpo tem inúmeros nomes, muitos dos quais estarão aqui neste mesmo Observatório para situá-lo no tempo e no espaço da observação midiática. No entanto, o Observatório não existe sem o Dines, sem sua presença inconfundível, sem a sua essência tão bem desenhada no discurso intransigente de Dines.
Conheci o Dines, pessoalmente, numa sexta-feira nervosa, 25 de abril de 1980, quando fui ao Rio conversar com ele sobre o Leia Livros, um book review que eu secretariava e para o qual ele vinha colaborando com gosto. O mensário era de propriedade do editor Caio Graco Prado, da Brasiliense, e do Cláudio Abramo, um dos mais competentes jornalistas que o Brasil já viu.
Dines trabalhava na sucursal da Folha de S. Paulo no Rio, da qual já fora o chefe, e passava por um momento de litígio com o jornal. Morava com sua mulher, Norma Couri, no condomínio Povoado das Canoas, em São Conrado, num casa afastada da cidade, acolhedora, repleta de livros e totalmente envolvida pela densa flora da Floresta da Tijuca com seus pássaros e seus macacos.
Ele estava preocupado naquele dia e expressou isso quando me pegou em frente ao hotel. A rigor, eram duas as preocupações. Uma delas (a outra você verá mais adiante) se devia à rocambolesca falha da operação de resgate dos 53 reféns norte-americanos no Irã. Um avião Hércules C-130 da força aérea se chocara com um helicóptero, ambos da força aérea americana, no deserto, e assim abortara a tentativa de resgate dos reféns. Um fracasso do governo Jimmy Carter. Tinha passado o dia acompanhando os desdobramentos – que acabaram levando à não reeleição de Carter. Qualquer conflito no Oriente Médio era para ele uma fonte enorme de angústia.
Sionista, Dines repetiu isso várias vezes. Em 2001 ele registrou: “Além de sionista, sou também um palestinista – desde meados dos anos 40 defendo a criação de dois estados na antiga Palestina, um árabe e outro judeu autônomos, laicos e democráticos.” Foi além. “Também sou tibetista (pela libertação do Tibete do jugo chinês), curdista (pela criação de um Estado Curdo com pedaços da Turquia, Irã e Iraque), libanista (contra a ocupação militar síria no Líbano) e um convicto cubista (contra o cerco americano a Cuba). Militei como timorista (pela libertação de Timor Leste do jugo indonésio) e como bengalista, pois cobri a guerra de libertação do Bangladesh (então Paquistão Oriental) torcendo a favor.” Esse é o Dines.
Jantamos e falamos muito. Ou melhor, eu ouvi muito. Acho que bebemos um vinho, não me recordo bem, mas me lembro estar diante de um mito. Eu havia lido na faculdade o seu livro O papel do Jornal, um estudo seminal sobre a liberdade de imprensa, a transparência e o jornalismo de interesse público, escrito depois de uma temporada dele na Universidade Columbia, em Nova York, logo após ter sido demitido do Jornal do Brasil – o jornal que ele ajudou a se transformar em referência de mais de uma geração de jornalistas.
Eu fora também leitor assíduo de sua coluna dominical de crítica da mídia na Folha, intitulada “Jornal dos Jornais”. Eu não sabia, vim a saber muito tempo depois (com a ajuda do Luiz Egypto, outro baluarte deste Observatório), qual tinha sido a reação do “seu” Frias (Octávio Frias de Oliveira, Publisher da Folha) ao saber que o Dines queria escrever uma coluna de crítica da mídia.
Os argumentos de Dines eram pungentes:
“Nós estamos com a imprensa sob censura. Já que vamos fazer uma revolução, temos que começar a falar sobre a imprensa! Isso é importantíssimo! O processo começa com a própria imprensa.”
”Dines, não te mete nisso! Você vai ganhar inimigos. Eles vão te matar. Essa gente é vingativa, não te mete nessa coisa“ – foi a desalentadora reação de Frias.
Apesar de tudo, Dines conquistou espaço na sexta página da edição dominical da Folha e lá ficou de julho de 1975 até setembro de 1977.
Foi um sucesso. Mas não durou.
O Jornal da Cesta
Luiz Egypto esclarece os motivos da destituição da coluna. Conta que em 17 de setembro de 1977, Cláudio Abramo foi afastado da direção de Redação da Folha. O cronista Lourenço Diaféria tinha sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional porque escrevera, e a Folha publicara, uma crônica sobre um sargento que morreu no zoológico de Brasília ao pular num poço de ariranhas para salvar a vida de um menino. “Prefiro esse sargento ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. (…) O povo está cansado de espadas e cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal” – escreveu o cronista.
Enfim, Diaféria foi preso e o jornal passou a publicar a sua coluna em branco. Os militares se irritaram e o general Hugo Abreu, então chefe da Casa Militar do governo Geisel, telefonou ao Frias e pediu a cabeça de Cláudio Abramo, que foi alijado da redação. Não havia mais espaço para contestações.
Alberto Dines teve interrompida então a publicação do seu “Jornal dos Jornais”. Também parara de escrever a coluna política, do Rio de Janeiro, na segunda página. Mas continuou na sucursal do Rio onde fui encontrá-lo em 1980 no auge de uma outra crise que nada tinha a ver com o Oriente Médio, ou seja, havia uma segunda preocupação quando o conheci naquela aflita sexta-feira no Rio de Janeiro.
Dines havia retomado seu artigo na segunda página da Folha em 1978. Retirara-se da chefia da sucursal depois da greve dos jornalistas de São Paulo, em maio de 1979, mas mantivera-se como articulista na página dois e assinava com as iniciais, AD.
No entanto, no começo de 1980 alguns de seus artigos começaram a ser recusados. A ditadura continuava em pleno vigor e os nervos seguiam à flor da pele. No auge de uma greve dos metalúrgicos do ABC paulista, no mesmo abril de 1980, Dines escreveu o artigo “São Paulo e os dois Paulos” (referência a Paulo Maluf e d. Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo). Não foi publicado. Egypto relata: em seguida escreveu outro, sobre o mesmo tema, com outro título. Não saiu. Insistiu no assunto pela terceira vez; também não saiu. Decidiu então publicar no Pasquim.
O próprio Dines explicou: “Eu era muito ligado ao pessoal do Pasquim, que sempre me perguntava se eu não queria escrever para eles, e tive uma ideia: (…) criei, naquela hora, uma seção, que depois eu continuei, chamada ‘Jornal da Cesta’, com uma frasezinha que atribuí a Shakespeare, porque no Pasquim você podia fazer isso, dizendo: ‘A história da imprensa não se faz só com o que sai publicado, mas com o que vai para a cesta’. Botamos o artigo, paginado como se fosse a página 2 da Folha, escrito embaixo: AD.” O “Jornal da Cesta” virou coluna no Pasquim. Acabou demitido da Folha.
Tudo isso para dizer que seu desejo pela crítica da mídia era incontornável.
Dines fez muitíssimas coisas entre o começo dos anos 1980 e o início do Observatório, em 1996. Voltou à Folha, saiu da Folha, escreveu livros, entre os quais a irrepreensível biografia de Stefan Zweig, dirigiu a revista Exame, da Abril, em Portugal, pesquisou na Torre do Tombo, escreveu em outros jornais, manteve coluna sindicalizada, deu palestras, deu e dá aulas. É um ser humano multicêntrico.
Ninguém se dedicou ao Observatório como ele, onde se espalha muito além do verdadeiro predecessor histórico do ombudsman da Folha que foi. Quando assumi a função de ombudsman, em 1989, a primeira pessoa a qual consultei para saber o que fazer foi o Dines. Antes, reli todos os textos de “O Jornal dos Jornais”.
Na primeira semana no cargo (setembro de 1989) recebi, via correio, um bilhete manuscrito do Dines. No bilhete, a rigor uma pequena carta, ele cumprimentava o jornal pela iniciativa e me dava um conselho inesquecível, daqueles que só pessoas que gostam de você conseguem expressar com clareza: “Não cometa o erro de deixar-se envolver pela ira sagrada ou pela missão salvacionista. Isto custou-me uma dúzia de ferrenhos inimigos sem que eu tivesse conseguido quebrar o bezerro de ouro”.
Sábio conselho. Só que não, como se diz hoje nas redes. Dines exercia nele o estilo faça o que eu mando e não faça o que eu faço. Pois não é que o Dines continuou e continua desrespeitando sistematicamente este conselho com sua ira sagrada e sua eterna missão salvacionista?
Salve o Observatório! Salve o Dines!