Quais são os desafios da cobertura jornalística nas eleições municipais, que nos últimos anos, além das discussões sobre os problemas da cidade incorporaram a retórica polarizada que tomou conta do Brasil e por consequência um ambiente em que a desinformação funciona como um ambiente para tirar a credibilidade das instituições? Para discutir esses temas, o Observatório da Imprensa realizou um webinar com a participação do professor Eugênio Bucci, professor titular da ECA-USP, articulista do jornal Estado de São Paulo e autor de vários livros sobre imprensa, Tai Nalon, diretora-executiva da agência Aos Fatos, e Érico Firmo, editor de política e colunista do jornal O Povo, de Fortaleza, com mediação da editora do Observatório da Imprensa, Denize Bacoccina.
Já é tradicional das campanhas políticas brasileiras tentar embelezar a própria biografia e desmerecer os adversários, quase sempre exagerando dos dois lados. Nos últimos anos, no entanto, informações falsas ganharam nova dimensão com o enorme poder de propagação das redes sociais. “Mentira sempre existiu. Mentira na política sempre existiu”, disse o professor Eugênio Bucci, que iniciou sua fala destacando a importância do Projor para a discussão e fortalecimento do jornalismo. “As falsidades, no entanto, tiveram uma aceleração muito grande com o incremento das chamadas plataformas sociais, que para muita gente são plataformas antissociais”, afirmou.
Bucci acredita que a sociedade está um pouco mais preparada depois do uso intenso de informações falsas na campanha de 2018, mas ainda vê riscos. “Agora, as democracias têm já alguma bagagem para enfrentar esse tipo de distorção. Talvez a sociedade esteja um pouco mais preparada para esse tipo de mentira tão insidiosa, potencializada pelas tecnologias”, afirmou.
Erico Firmo, editor de política e colunista do jornal O Povo, de Fortaleza, vê novas ferramentas de propagação, de desinformação e tentativas de influenciar o voto do eleitor de forma não legítima, e diz que existe uma mistura entre as novas práticas trazidas pelo digital com estratégia adotadas há muito tempo. “Isso está muito misturado também com as práticas que a gente vê há mais de 100 anos”, afirmou.
Para Tai Nalon, fundadora e diretora-executiva da agência Aos Fatos, que se posiciona como uma organização que combate a desinformação, o fluxo de informação aumenta durante períodos eleitorais, e isso inclui tanto a boa informação quanto a má informação. O problema, diz ela, é que as informações falsas competem no ambiente digital de maneira desigual e algumas plataformas dão mais visibilidade à informação errada. Aumenta também nesse período a demanda por checagem de informações. “Mas a verificação nunca será suficiente em comparação ao que a gente percebe transitando nas redes”, diz ela.
Um agravante das eleições municipais, em relação à eleição nacional, é que ela acontece simultaneamente em mais de 5 mil municípios, dificultando o trabalho de checar um volume tão grande de informações. “É um desafio do ponto de vista do combate à desinformação, porque ela é mais fragmentada, é mais direcionada a determinados tipos de comunidades e determinados perfis de eleitores”, afirmou. E a desinformação pode ser tanto digital quando física, em materiais impressos distribuídos pela cidade e que podem influenciar uma eleição. “Eis o desafio da checagem: compreender essa multiplicidade de lugares e ações e estratégias para que mentiras, algumas mais perigosas do que outras, grassem e de certa forma alterem fundamentalmente tanto o resultado de uma eleição específica, quanto a credibilidade do processo eleitoral inteiro.”
Assim como os disseminadores de informações falsas usam a tecnologia para espalhar esse conteúdo, agências de checagem também desenvolvem ferramentas para tentar restabelecer os fatos corretos. Mas nem sempre conseguem atuar na mesma velocidade ou intensidade. O Aos Fatos lançou em 2020, durante a pandemia, uma ferramenta chamada Radar, um algoritmo que mapeia plataformas digitais atrás de padrões discursivos comumente associados a campanhas desinformativas, qualificando determinadas publicações a partir do seu potencial desinformativo.
Hoje, no entanto, Tai diz que os padrões discursivos evoluem numa velocidade tão grande que essa ferramenta não é mais capaz de detectá-los. “São narrativas muito grandes e muito sofisticadas, de modo que uma checagem de fatos ou uma investigação muito específica não dá conta de desbancar aquele universo inteiro que já foi criado, já foi cimentado e já criou comunidades ao redor.” A ferramenta que a agência usa é o chatbot Fatima, disponível pelo WhatsApp, Telegram e pelo site do Aos Fatos para checar se determinada informação é verdadeira ou não.
A desinformação, na visão de Eugênio Bucci, adquiriu uma condição mais abrangente do que apenas um enunciado, um conteúdo. “A desinformação se tornou um ambiente. É um ambiente no qual as fontes de saber perdem credibilidade. A ciência, a universidade, a medicina em particular, a Justiça, a imprensa, aquelas instituições para as quais a gente perguntava as coisas para saber o que se passava de fato, entram numa corrosão e vai se instaurando um meio em que ninguém acredita em mais ninguém”, afirmou.
Bucci também citou a filósofa Hannah Arendt, que disse que, para o líder autoritário, não interessa que o povo acredite nele. Interessa muito mais que o povo não acredite em mais ninguém. “E isso ocorreu em alguma escala. É um tempo em que a verdade importa menos ou não importa nada. Se você prova que o fulano mentiu, o efeito disso é muito pequeno.”
E como então restaurar a credibilidade da imprensa e de outras fontes de informação? “É fundamental que nós tenhamos a consciência de que não basta informação para combater a desinformação. É necessário um trabalho na construção da credibilidade das instituições”, afirmou Bucci.
Erico Firmo trouxe a experiência de quem está no dia a dia da cobertura de uma eleição municipal, e falou das dificuldades de enfrentar a violência da campanha, numa situação em que facções criminosas determinam até que candidatos podem entrar em quais bairros, candidatos são intimidados com tiros disparados em frente à sua casa e há um crescimento da violência jurídica. “Tem várias situações que parecem de eleições de muito antigamente. Eu nunca tinha visto esse tipo de situação aqui”, contou Erico.
A fragilização dos veículos de comunicação, com a crise das fontes de financiamento, é outra dificuldade para a cobertura eleitoral. Erico diz que vê claramente em coberturas nos estados do Nordeste que acompanha a falta de repórteres que questionem as autoridades, os candidatos. “Vejo alguns veículos reproduzindo muito a agenda de candidato, o discurso de candidato, muita coisa com cara de release. Tenho sentido muita falta de reportagem e acho que se reflete no cenário de disseminação e desinformação nas eleições por aqui”, afirmou.
Veja o debate na íntegra:
https://www.youtube.com/watch?v=CsFvxyA2B8g