Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A desconstrução do real na propaganda política

Parece contraditório dizer que a propaganda política veiculada na TV possa realizar-se por um mecanismo de ‘desconstrução’ do real para instaurar, por sua vez, a realidade, enquadrada segundo a ‘visão’ política e/ou discursiva do partido que a emprega.

Vejamos, de uma maneira sucinta, como tais mecanismos operam mediante a midiatização da percepção da realidade. Considerando-se que tal percepção se constitua a partir da (re)leitura dos acontecimentos veiculados nos meios de comunicação, o que se tem é um ‘recorte’ através do qual o leitor/telespectador fabricará os seus significados para determinada realidade apresentada. Em contrapartida, o referido recorte, que não é a realidade mas duplo produto dela – como resultante da mídia que lhe dá visibilidade e, em última instância, do receptor leitor/telespectador. Se esse processo é válido na produção dos fatos jornalísticos, que além desses recursos pode-se valer de outros como do status da objetividade e imparcialidade, também o seria na produção publicitária específica dos partidos políticos.

Para tornar menos abstrata esta análise, tomemos a propaganda do PT que foi ao ar em 6/5/04. Interessante observar que a imprensa tem se posicionado criticamente em relação ao tratamento que o governo lhe tem dispensado. Esse, ao mesmo tempo em que reclama a falta de uma ‘agenda positiva’, parece dispensar os moldes tradicionais (jornalísticos) para prestar contas à sociedade. Assim, é notório que os serviços publicitários assumam papel relevante nesse contexto – como recurso de esclarecimento direcionado à massa populacional, pela clara opção do meio televisivo.

O que se pôde assistir – com todo apelo que a publicidade sabe lançar mão – foi um quadro comparativo (permeado pela promessa de grandeza a que naturalmente somos destinados) com o governo anterior. Do alto de uma escarpa, temos o vale imenso que se abre a nossos olhos, e é onde nos sentimos menores diante da esplendida natureza desse país. Mas é também de onde o vemos melhor – e qualquer sacrifício parece pouco, até necessário, para que se construa um Brasil mais digno.

Deslocado do pico escalado (com os campos verdejantes aos pés) o apresentador (recomposto) aparece no estúdio juntamente com uma companheira para traçar e demonstrar (como jornalistas) os índices que comprovam que o país mudou, nesse balanço de 1 ano, 3 meses e seis dias de governo Lula.

A comparação se inicia como um diagnóstico ao qual o paciente Brasil foi submetido – detectados os problemas faz-se necessário aplicar as medidas para curá-lo, ou pelo menos amenizar o sofrimento. A metáfora se emprega facilmente como recurso estilístico para estabelecer uma empatia com o telespectador – empatia facilitadora de sentidos. E como todo paciente fragilizado (como o povo), deveria submeter-se ao ‘saber terapêutico’ de quem o comanda. Estaríamos, assim, diante do saber puro que reduziria o sujeito/paciente a um simples objeto de pesquisa, de experimentação ou tratamento (Zizek) – como diante de um experto (em economia) que nos converteria ao imprescindível receituário neoliberal.

Demonstrou-se em seguida, numa estratégia de ‘precisa vaguidade’ e com o exaustivo apoio estatístico, os pontos diferenciais e os avanços em relação aos 12 últimos meses do governo FHC. Apontam-se inúmeros índices sem, no entanto, precisar, a não ser com mais índices, os primeiros resultados alcançados –exemplar disso a criação de novos postos de trabalho, na agroindústria ou na agricultura no interior do país, sem designar, todavia, as regiões.

Diga-se que a cada quadro informativo reiterou-se a informação pelo recurso à frase ‘isto é fato, isto é verdade’ repetida vezes. E contra fatos (contra a verdade factual) não há contestações, não há espaço para dúvidas – o discurso adquire um tom fundamentalista, de verdade absoluta. Todos os sinais econômicos são indicadores de que ‘estamos no caminho certo’, o FMI, as bolsas de valores validam essa percepção, é preciso que o povo mantenha a esperança (dando também o seu aval).

A discrepância se dá em outro nível, talvez – na percepção daqueles que compõem outros índices, os do desemprego, do analfabetismo etc. Mas essa dimensão parece excluída (senão dos noticiários e da propaganda política de partidos adversários) das análises (macro e microeconômicas) ainda que se apregoe que tudo que se realiza é com vistas ao social.

Por um lado, a mídia participa dessas estratégias, fornecendo ou instrumentalizando, no caso específico da televisão, tal prática discursiva. Por outro lado, à imprensa escrita caberia o papel de discernir e/ou desconstruir tais falácias argumentativas, próprias do discurso político. Se isso é feito ou não é outra questão.

O perigo está em se aceitar sem criticidade tais fabricações discursivas, pela distorção da realidade e fragmentação da percepção como ato de alheamento ou isolamento – com os prejuízos sempre evidentes que isso acarreta à prática democrática. Não se deve excluir nem da pauta jornalística nem do diálogo político a dimensão humana.

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Poeta, Jaú (SP)