Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A publicidade sem limites

A vida brasileira, nas últimas semanas, tem sido platéia de sucessivas encenações de peças publicitárias, que, no propósito de afirmar marcas a qualquer preço, sejam elas de cerveja, sejam de planos governamentais, rompem fronteiras da ética, oferecendo, principalmente à juventude, fartos exemplos em estratégias de vitoriosas e rentáveis práticas de falsificação. A respeito da concorrência entre as marcas de cervejas, nada terei a registrar, até por considerar que muito – e além da conta – sobre o assunto já foi escrito. Milhões de reais, traições, quebras de contrato inundaram noticiários e artigos, dando ressonância ainda mais ampla ao que deveria ser objeto de delegacia de polícia e tribunais.

Em outro caso, porém, embora atinente à área da propaganda, a questão é bem mais grave, na medida em que envolve verba pública e esfera governamental. Duas peças publicitárias foram, após denúncia de irregularidades (divulgação de conteúdos enganosos), retiradas, sendo que uma delas (campanha do Pronaf) estimada em R$ 8 milhões. Sobre tal fato, a despeito de tantas matérias publicadas em diversos órgãos da imprensa, mostrou-se conclusivo o ajustado artigo de Elio Gaspari (‘Publicidade é uma coisa, mitomania é outra’), nas edições de O Globo e Folha de S.Paulo (31/3/04).

Modos de apropriação

A abordagem de um tema cujos focos recaem sobre publicidade/propaganda, em razão das próprias natureza e destinação de ambas, não pode pressupor a ingenuidade. E, nesse caso, ingenuidade significa achar que, nas duas modalidades, pode haver propósitos profundos ou humanísticos. Pelo contrário, na raiz da publicidade, localiza-se o fundamento com o qual se dá o fomento dos negócios e das mercadorias; na propaganda, encontra-se o princípio da disseminação de conceitos ideologizados com que governos tentam firmar sua imagem. Em ambos os processos, fantasia, ilusão e técnicas subliminares formam a rede de apropriação do imaginário individual ou coletivo, o que define, na sua própria origem, a condição de agentes propulsores do modelo capitalista e de promotores das tipificações da sociedade de consumo.

São esclarecedoras duas conceituações de autores que se dedicaram ao exame mais acurado do problema aqui em pauta. Uma é formulada por D. B. Truman: ‘[A propaganda é] qualquer tentativa mediante manipulação de palavras ou de substitutos de palavras para controlar as atitudes e conseqüentemente o comportamento de certo número de pessoas numa questão controvertida’ (The governamental process, New York, Knopf, 1951. p. 223). A segunda citação provém de F. C. Irion: ‘[A propaganda é] um esforço unilateral de apresentar informações, geralmente por método secreto ou sub-reptício, o qual o autor sabe que é falso, pelo menos em parte’ (Public opinion and propaganda, New York, Crowell, 1950. p. 9).

A despeito do diferente perfil quanto ao ‘objeto’, algo em comum alia a publicidade à propaganda: a manipulação. As duas citações foram escolhidas também com a intenção de diluir a separação entre publicidade e propaganda. Na citação de Truman, fica o fato mais evidenciado, a partir do momento que inclui na propaganda ‘atitudes’ e ‘comportamentos’. Deslocados os termos para a figura do ‘consumidor’, tem-se a publicidade. Daí que o tema se faz merecedor de atenções multiplicadas, considerando a crescente impregnação que as duas modalidades (publicidade e propaganda) têm na sociedade brasileira. Para tanto, observe-se que o Brasil é um dos países com índices mais altos em gastos com publicidade e propaganda.

Proposições críticas

É sabido que o leitor deste Observatório tem apreço pelo pensar e pela criticidade. Deste modo, a título de exercício analítico, formulamos algumas questões, com base em ocorrências da vida brasileira:

1. Os avolumados gastos com publicidade e propaganda serão indício de propensão crescente do público a deixar-se levar por apelos fantasiosos?

2. Será lícito pensar que, no Brasil, o incremento na área de publicidade diz respeito a crescimento de consumidores com progressiva perda de qualidade cultural?

3. Quando publicitários e marqueteiros se sentem encorajados em práticas de falsificação agressivas e explícitas estarão confiantes no julgamento majoritário de um público pouco atento a essas fraturas éticas?

4. Haverá relações associativas, na sociedade brasileira, entre discurso publicitário e caráter nacional?

5. Que possíveis correlações podem existir entre frustrações existenciais e compensações materiais?

6. Que conexões podem existir entre desilusões afetivas e práticas consumistas?

As questões sugeridas põem na pauta de discussão aspectos que consideramos relevantes, levando em conta o fato de a sociedade de consumo na qual nos inserimos, com seus hábitos, aspirações e práticas cotidianas, exercer decisivo papel quanto à qualidade de vida e, por extensão, definir opções quanto ao seu destino histórico. Não nos esqueçamos de que as campanhas políticas são cada vez mais sustentadas por procedimentos de efeitos persuasivos, ilusórios ou artificiais, empobrecendo assustadoramente o debate propriamente dito.

Publicitários e marqueteiros – até onde também essa diferença possa ser alvo de percepção – adquirem importância progressiva no cenário político brasileiro, sem precisarmos recorrer ao esclarecedor filme Doces poderes (1996), de Lúcia Murat. Não é menos alarmante o fato de que segmentos universitários estão sempre dispostos a gastarem quantias significativas em bobagens de toda ordem, mas resistentes quando lhes é solicitada a compra de livros. Tais configurações, portanto, requerem análise, além de medidas outras cuja origem tem de se manifestar nas consciências individuais, a fim de se tornarem, se somadas, em atitudes societárias. Fica a sugestão…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) – RJ