Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Casadinhos, matéria e anúncio

Agora é a revista Globo Rural, na edição de novembro, que derrapa feio numa matéria de duas páginas, assinada por um jornalista e um fotógrafo. O título – ‘A liberdade é azul’ –, é o mesmo de um dos filmes da trilogia de Krzysztof Kielowski, mas o conteúdo infelizmente é um soco na cara do leitor desavisado. Um soco bem maior do que o do filme e com efeito oposto: enquanto a mensagem de Kielowski faz qualquer um pensar, agregando conhecimento, a matéria apresenta um informe publicitário da Nissan Frontier SE Strike, picape de luxo cujo valor inicial é de R$ 89.138.

Editar press-release como se fosse notícia faz parte de uma das ferramentas de tortura ultra-modernas da ditadura empresarial, que visa deformar a informação e emburrecer o leitor por meio de lavagens cerebrais. Algumas páginas antes da ‘matéria’, há um anúncio sangrado em página dupla da mesma fábrica. Casamento de anúncio com matéria?

Elas são cada vez mais comuns nos jornais, surgem descaradamente na TV e nas revistas e já ganham ares de normalidade jornalística. O trouxa é o assinante, o comprador nas bancas, o público-leitor, que engole as matérias-press-release como notícias porque estão vestidas com a roupa do jornalismo, porque não há uma lei para impedir que assim seja, embora todo jornalista decente saiba que informe publicitário não pode aparecer como notícia.

Quantos já perderam o emprego por causa dessas brigas?! E nem dá para não lamentar a extinção de um tempo em que se ganhavam essas brigas. Na lógica atual, talvez nem se discuta a questão, e isso deve explicar por que a ciranda das cadeiras não pára. A Globo Rural é um bom exemplo: nos últimos três anos já passaram por lá três diretores de redação. E a revista vem piorando em termos de qualidade, resistindo, é verdade, porque teve bons nomes. O que será que esses bons nomes não conseguiram engolir? Coisas como a liberdade azul?

Devastação geral

A narcomídia precisa urgentemente de uma CPI. Informação não poderia, por lei, chegar ao leitor dessa forma, enganando-o via departamento de marketing.

Coisas muitos mais sérias do que imaginamos acontecem em decorrência desses acordos e basta refletir um pouco para entender o sistema de esgoto por onde escoam as fezes dessas negociatas, mas vale lembrar que agricultores e pecuaristas brasileiros, mesmo de médio porte, estão longe de poder comprar uma Nissan Frontier SE Strike. Mesmo assim podem e gostam de comprar revistas rurais e qualquer casinha com fundo de quintal tem uma revista Globo Rural em cima da mesa.

O público-leitor da Globo Rural, que sustenta a revista nas assinaturas e nas bancas e que tem poucas opções desde que o Guia Rural Abril foi extinto, sofre a cada matéria-press-release, a cada matéria do rei disso, rei daquilo, uma espécie de estupro moral e intelectual. Nesses exemplos pequenos fica claro o quanto a mídia está de costas para o público-leitor, espectador, e de frente para seus anunciantes. O jogo mirabolante de interesses faz cada vez menos sentido, já que o anunciante ávido por obter certos favores da mídia não mede as conseqüências dessas negociatas, enquanto a mídia coloca toda a força das comunicações à venda.

Ambos, inacreditavelmente, não percebem que a bolha das aparências não se sustenta por muito tempo, e continuam investindo numa relação que fatalmente tem seus dias contados. Afinal, é um casamento estéril, de interesse, de fachada. Nada de bom se pode esperar desses rumos. Mas, colegas, quem puder persista a pão e água. Amanhã ou depois de amanhã vai faltar profissional que não se venda no mercado, vai sobrar leitor querendo qualidade e, quem sabe, os anunciantes e os marqueteiros descubram que dinheiro torrado assim, sem causa, só no efeito, é uma devastação em todos os sentidos, a começar pelo pecuniário.

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Jornalista em Florianópolis