Em 1891, Lord Henry, personagem do Oscar Wilde em The picture of Dorian Gray, dizia: ‘Meu caro rapaz, nenhuma mulher é um gênio. As mulheres são um sexo decorativo. Elas nunca têm nada a dizer, mas o dizem de forma encantadora. Elas representam o triunfo da matéria sobre a mente, assim como nós, homens, representamos o triunfo da mente sobre a moral.’
Mais de cem anos se passaram e, nesta época e lugar onde a televisão tem substituído o papel para falar às massas, os comerciais de importantes itens de consumo, como o automóvel e a cerveja, expressam o mesmo valor ideológico reservado às mulheres que aquele esboçado por um comentário machista – ainda que caricato e satírico – pertencente ao final do século 19.
O ódio ao feminino
A insistência na representação da mulher como um ‘sexo decorativo’, baseada em uma demanda capitalista pelo lucro, torna-se ainda mais condenável e vergonhosa porque age como um rolo compressor sobre os valores culturais associados à igualdade e à dignidade da mulher, conquistados através de incessantes lutas, árduas e até dolorosas, pois envolveram muita renúncia e sacrifícios, durante todo o século 20 e o início deste novo século que se anunciava tão promissor.
Essa política vil permanece mesmo quando há um apelo oficial contra o erotismo, como mostra a jornalista Fabiane Leite no jornal Folha de S. Paulo (‘Cervejarias descumprem veto a erotismo’, 30/1/2007), ou quando parece claro para os agentes produtores, supostamente bem-informados, que a corroboração da idéia da mulher como um mero objeto de consumo, ou simples sujeito destinado ao prazer masculino, não só influencia mas também causa a exploração e o abuso domésticos e sociais da mulher, sendo uma das fontes que alimentam o ódio ao feminino – fator tão bem demonstrado e articulado pela doutora e socióloga Berenice Bento, da Universidade de Brasília, em ‘A cerveja e o assassinato do feminino‘, também publicado na Folha e ‘aplaudido pela ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéia Freire, que quer dialogar com fábricas de cerveja para mudar este tipo de publicidade’ (ver aqui a entrevista de Mauro Malin com a ministra).
‘Batatas de sofá’
Na sede pelo gozo do marketing bem-sucedido e do retorno financeiro, os profissionais e seus contratantes brincam com o perigo, lembrando uma obra de ficção em que os cientistas, tão vislumbrados pelos fantásticos benefícios imediatos que sua experiência prenuncia, não hesitam em concretizá-la, mesmo cientes da grande tragédia que se avulta com o estabelecimento de sua criação. Não estaria Lorde Henry certo pelo menos em relação aos homens?
Mesmo que confortado pela visão inteligente de alguns homens consumidores de carros e cervejas como o Marcão em ‘`Mulherizar´ ou não a cerveja, eis a questão‘, cá, em meu próprio momento de ceticismo e delírio, me pergunto se os homens que os marqueteiros querem conquistar com seus comerciais eróticos e que irão se afirmar como ávidos consumidores de cerveja, depois de expostos a repetidas pulsações televisivas, são mais parecidos com os garotões sarados dos comerciais ou com membros de um grupo formado, em sua maioria, por ‘batatas de sofá’, digo couch potatoes, e outros infelizes que enchem a barriga com o líquido e o cérebro com o álcool para ficarem mais perto, em seus próprios delírios, das mulheres estúpidas e plastificadas (re)produzidas pelos comerciais.
Os sarados que conheço estão todos partindo para a água mineral. Mas essa é uma outra história.
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Arquiteto, professor e empresário, Belo Horizonte, MG