Há quem diga que o direito de anunciar mercadorias é o pilar de sustentação do jornalismo independente. Será isso mesmo? Qual é, afinal de contas, o ponto de apoio – econômico e também político – da atividade profissional daqueles que estão incumbidos de informar a sociedade sobre os assuntos de interesse público?
Encaremos essas interrogações com algum método e com um pouco de calma. Quando falamos em“sustentação” ou em “ponto de apoio”, estamos falando em base institucional, em legitimidade. Ao mesmo tempo, estamos falando em fonte de recursos, em viabilidade financeira. A sustentação deve ser compreendida no plano político e também no plano econômico.
No primeiro, as democracias amparam a atividade profissional (necessariamente profissional) de repórteres, articulistas e editores num regime de liberdade e de garantias especiais (como a do sigilo da fonte) para proporcionar à imprensa os meios institucionais indispensáveis para que ela possa ser independente do poder. As razões são óbvias. Se a imprensa, para existir, depende da boa vontade de quem governa, não poderá atender a contento ao direito à informação de que todo cidadão é titular. Suas informações estarão contaminadas ou mesmo capturadas pela óptica do próprio poder. É por isso que se diz, com acerto, que a imprensa que serve à óptica do poder não pode ser chamada de imprensa.
É claro que apenas direitos escritos na lei não são suficientes. Para que não sejam meramente uma declaração de intenções, as garantias devem traduzir-se em sustentação econômica e em viabilidade material. A imprensa não deve depender de governos em termos legais ou institucionais, mas também não deve depender deles em termos econômicos. Quando os governantes pagam as contas das redações é sinal de que algo desandou. E então, quem deve pagar essas contas? Tem-se repetido que a publicidade é que assina o cheque. A publicidade seria a maior financiadora da imprensa. Pelo menos é assim que tem sido. O dinheiro arrecadado com a venda de exemplares avulsos e de assinaturas (incluindo assinaturas digitais) ainda não é suficiente. E no caso das emissoras de rádio e televisão de sinal aberto é igual a zero.
Absolutamente toda a arrecadação vem da publicidade. Desse modo, há quem diga ser a própria garantidora da liberdade de imprensa. Outros vão ainda mais longe e estabelecem um sinal de igual entre a liberdade de imprensa e a liberdade de veicular anúncios comerciais. Imprensa e publicidade seriam, enfim, as duas pernas com que o corpo da liberdade de expressão consegue caminhar. Uma não poderia existir sem a outra.
Em que pesem as boas intenções presentes no argumento, trata-se de uma mistificação. Embora o modelo que vigorou ao longo do século 20 seja mais ou menos esse – o modelo no qual o faturamento publicitário representa a parcela majoritária da receita total das empresas jornalísticas de sucesso –, ele não está na origem histórica da imprensa e também não está na base dos principais modelos de negócio que se esboçam para o futuro.
Já em nossos dias vemos a publicidade buscar seus caminhos longe dos veículos jornalísticos (o Google, que não produz uma linha de jornalismo, tornou-se um poderoso veículo publicitário, desbancando jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão). Vai ficando óbvio que a missão primeira da publicidade nada tem que ver com sustentar a imprensa, mas com alcançar seus clientes onde quer que eles estejam. Isso não a torna mais feia ou mais bonita. Apenas é o que é.
Rumos diferentes
Hoje, os dois rios se afastam. Para a saúde financeira dos veículos jornalísticos o período é crítico, mas é também esclarecedor. Está cada vez mais perceptível que o papel da imprensa não se confunde com o papel da publicidade. O estatuto da liberdade de uma e o da outra são distintos. Um dos maiores editores da história recente do Brasil, Roberto Civita, registrou essa distinção num discurso de 15 de julho de 2008, no IV Congresso Brasileiro de Publicidade. “Evidentemente”, disse ele,“não devemos – a priori – condenar toda e qualquer restrição à publicidade nem equacioná-la com tentativas de limitar a liberdade de imprensa. Há restrições à publicidade que fazem sentido, como – por exemplo – aquela referente à propaganda de cigarros adotada em praticamente todos os países desenvolvidos.”
A liberdade de anunciar deve ser compreendida, assim, como uma liberdade acessória à liberdade de fazer comércio. Seus limites legais – e democráticos – são dados pelos limites da própria atividade comercial. Já a liberdade de imprensa é fundamental, primordial. Na democracia, qualquer cidadão é livre para escrever um artigo defendendo a legalização de todas as drogas, mas ninguém tem liberdade de anunciar esta ou aquela espécie de crack, já que esse comércio não está autorizado.
Acreditar que a liberdade de imprensa seja um tributo que a publicidade paga à democracia não passa de uma veleidade ideológica. O que se deu foi o oposto: a industrialização dos jornais, ainda no século 19, é que permitiu que os anúncios pegassem carona nos veículos impressos, o que terminou por impulsionar as duas atividades. No mais, a imprensa precede a publicidade. Mais ainda, a liberdade de imprensa abriu horizontes para a liberdade de anunciar.
Do ponto de vista dos jornalistas, enxergar essas distinções ajuda a evitar identificações entre os interesses gerais (não particulares) do mercado anunciante e os interesses gerais da imprensa. Eles não são idênticos, ainda que, com justiça e com legitimidade, ambos possam associar-se. Por vezes, porém, eles são antagônicos – e, se não estiverem atentos, os jornalistas podem tomar por seus os interesses que os tomam (e os descartam) como meios. Fora isso, quanto mais a sociedade for chamada a pagar diretamente a conta das redações, por assinaturas e outras formas de apoio, melhor.
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP