Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O pagode da moralidade mercantil

Quando uma polêmica não tem mais nada a dar em termos públicos, é hora de fechar para balanço. E os resultados de uma pequena pesquisa divulgada por O Globo não deixam margem a dúvidas: o ‘caso Zeca Pagodinho’ mobilizou mais internautas do que o ‘escândalo Waldomiro’ ou o divórcio de Luma de Oliveira. Despertar o interesse de aficionados da internet ou mesmo da televisão significa mobilização social, já que o fato social passa hoje necessariamente pela mídia eletrônica.

Os antecedentes foram bastante repisados por jornais e revistas. Zeca Pagodinho, o simpático sambista, de quem o presidente Lula se declara amigo, cantou seu amor pela cerveja Brahma no comercial Amor de verão, criado pela agência África, de Nizan Guanaes. Tratava-se, como bem se sabe, de um amor contratualmente proibido, uma vez que o cantor era garoto-propaganda da Nova Schin, cuja participação no mercado consumidor subiu de 12,6%, em janeiro, para 13%, enquanto a da Brahma caía de 18,2% para 17,8% no mesmo período. Como há seis meses a diferença entre as duas marcas era de 11,6 pontos percentuais, ficava mais do que evidente que a imagem de Zeca Pagodinho valia ouro no mercado publicitário.

E na visão do Grupo Schincariol e da agência Fischer América, foi realmente de ‘ouro’ (aparentemente, algo como 3 milhões de reais) que se tratou, porque de repente Zeca deixou de sugerir ao público que ‘experimentasse’ a Nova Schin, retornando a seu amor antigo, a centenária Brahma. As conseqüências da infidelidade vão ser avaliadas na Justiça, depois que o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) recusou o pedido da Schincariol e da Fischer de suspensão do comercial.

De tudo isto é possível extrair-se alguma lição sobre mídia, seu funcionamento e seus valores. De um modo geral, para os diretamente afetados pela questão e para alguns observadores, trata-se de um problema ético. Eduardo Fischer, o publicitário da Nova Schin, é categórico: ‘O Nizan rasgou todos os códigos de ética. Já o Zeca, nunca vi um artista com contrato vigente fazer uma barbaridade dessas’ (Época, 22/4/2004).

Palavra violada

É preciso ressaltar aqui que, segundo Nizan Guanaes, a Interbrew AmBev, dona da marca Brahma, pretende assumir a multa da rescisão de contrato, estimada pelo mercado em cerca de 18 milhões de reais, fora os custos de possíveis processos. A questão jurídica estaria assim prevista ou assegurada, já que o rompimento de um contrato faz parte do jogo corrente no direito positivo. A discussão centra-se no que resta: a ética.

Mas não seria um problema moral? É oportuna a distinção (estabelecida pelos neokantianos alemães) nem sempre filosoficamente pacífica, entre os dois termos. Moral (ou moralidade) é um conjunto de prescrições normativas, consideradas a partir de coordenadas de tempo e lugar, relativas à formação caracterial e à conduta dos indivíduos. As prescrições aparecem socialmente como regras, manifestadas em atitudes e comportamentos, que orientam a vida individual e coletiva, com referência a valores aceitos pela comunidade. Vinculada a convicções de natureza diversa, a moral é múltipla – são várias as moralidades na sociedade moderna. Pode-se sempre questionar a validade de um determinado ordenamento moral.

A ética, não – ela seria única (embora divisível em ramos, como ética política, ética pessoal etc.) enquanto episteme, ou seja, enquanto saber teórico do comportamento moral, voltado para os juízos de valor sobre as ações humanas, tidas como boas ou más, justas ou injustas. A partir daí, costuma-se dar o nome de ética ao conjunto de princípios básicos (por que ou para que agir de tal maneira) que norteia as ações individuais e sociais. E isto para quem aceita a possibilidade de existência dessa episteme. Para filósofos como Wittgenstein (ao lado de Heidegger, é um dos maiores do século 20), a ética simplesmente não pode ser formulada.

Por estratégia analítica, deixemos de lado a complexidade da discussão sobre a ética e vamos supor que Zeca Pagodinho tenha incorrido numa transgressão de natureza moral, ou seja, que tenha violado a palavra antes empenhada com Fischer/Schincariol, assim como tenha mentido ao público consumidor no sentido de que seria Schin a cerveja de sua preferência. Ele nunca fez realmente tal confissão (‘experimenta!’ foi a sua recomendação), mas era o que se supunha implícito em sua atuação como garoto-propaganda daquela marca.

Suspeita amarga

O argumento da mentira é frágil, porque, em matéria de publicidade e mercado, nada se sustenta pela prova lógica da verdade. Trafega-se aí na zona nebulosa do convencimento ou da persuasão, com a garantia do poder empresarial dos fabricantes de um produto e a embalagem carismática da retórica publicitária. Não foi a ‘verdade’ de Zeca que influenciou os consumidores (ademais, o fato de gostar de cerveja não faz dele autoridade no assunto), mas a sua ‘performance’ persuasiva: simpático, rico com jeito de gente simples, escancarando o fato de que começa a beber de manhã cedo, mas sem a inconveniência do alcoólatra.

Quanto ao argumento da violação da palavra, existem primeiramente as já mencionadas conseqüências jurídicas, para as quais a nova empresa contratante do cantor parece estar preparada. Vem depois a empatia pública do cantor, que poderia sair arranhada do episódio. Afinal, tem havido quem indague, quem poderá confiar depois disso tudo na palavra de Zeca Pagodinho? Quer dizer então que, quando o dinheiro fala, a verdade se cala?

A estas e outras questões similares sempre se poderá responder com novas perguntas: que credibilidade tinha antes o cantor? Não consta que ele esteja no auge da carreira (seu último CD está em primeiro lugar entre os mais vendidos há três meses) por ser crível, e sim por galvanizar os amantes do pagode. Alguém acredita realmente no que diz um comercial ou simplesmente gosta ou não gosta dele? São coisas diferentes. Ninguém bebeu a Nova Schin pela maior ou menor qualidade de seu lúpulo fermentado, mas por afeto. Entenda-se: empatia, sensação, emoção – esta é a matéria de que se fazem o entretenimento, o espetáculo, a publicidade.

Por trás de tudo isto, no tocante à cerveja, agita-se um negócio que movimenta 10 bilhões de reais por ano. Nesta guerra, a única moralidade visível é a mercantil, ou seja, a do mais esperto. Ética tem a ver com o que o antigo grego chamava de eudaimonia, isto é, a felicidade de viver politicamente integrado na Cidade, a boa e justa vida das virtudes. A moral do mercado é dos grandes números em matéria de lucros. A publicidade é, por sua vez, um complexo discursivo atravessado por uma moral de negociantes. A mesma ambigüidade de que ela padece, o mesmo jogo entre o verdadeiro e o falso, podem acontecer todos os dias, embora de modo não tão visível, em setores da nossa mídia mais sisuda. Para não falar de nossa vida política, onde quem ‘experimentou’ começa a amargar a suspeita de que tem gente faltando à palavra empenhada.

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Jornalista e professor da UFRJ