Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os limites dos instrumentos de persuasão

No caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo (15/10/2006), pudemos ler o seguinte trecho de uma oportuna matéria intitulada ‘Mamãe, eu quero’:

A era das loiras agoniza na TV, programas educativos fazem sucesso. Agora, pais, psicólogos, Congresso, governo e Ministério Público têm uma preocupação além do conteúdo da programação infantil: os comerciais dirigidos a crianças.

Estão na mira principalmente as propagandas abusivas, por exemplo, as que dizem ‘Peça para a sua mãe comprar isso’ ou aquelas que passam a idéia de que a criança que adquire o produto anunciado será melhor (mais forte, mais inteligente, mais ‘legal’, mais feliz) do que as outras.

Até aqui, ótimo. Ninguém de bom senso parece discordar da necessidade de regulamentação dos limites para instrumentos publicitários de persuasão. Certamente, a força da reportagem aumenta quando o público alvo dos comerciais é feito de crianças, que quando comparadas a adultos, têm inegavelmente um menor poder de discernimento quanto ao caráter ‘abusivo’ de certas propagandas. Contudo, ao contrário do que a matéria da Folha parece sugerir, os adultos em geral não compõem uma massa menos susceptível a um certo tipo de apelo presente em comerciais, do que o público infantil. É sobre esse ponto que incidirá o nosso comentário.

Na matéria de quase duas páginas – que, aliás, só não foram ocupadas integralmente pela presença de material publicitário (dirigido, é verdade ao público adulto!) – discute-se, entre outros tópicos relacionados, as divergências entre o Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária) e um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional. Resumidamente, o referido projeto de lei prevê regras bem mais estritas que as atuais, à veiculação de comerciais para crianças, tomando como modelo leis existentes em países como a Suécia; enquanto o Conar, em sintonia com os interesses do mercado, vem propondo regras mais livres, quando comparadas as do projeto em discussão.

De acordo com a matéria, a proposta parlamentar estaria apoiada por uma ‘pesquisa elaborada para a criação da lei sueca, que considera que só aos dez anos todas as crianças são capazes de distinguir uma propaganda de um programa na televisão’. Passando ao largo de uma possível discussão sobre se de fato o critério apontado pela pesquisa deve merecer ou não o destaque que recebeu, devemos aceitar o argumento de que uma propaganda, ao dirigir-se a uma criança, alcança alguém ainda em plena formação.

Há também, na matéria, o depoimento de um psicólogo referido como ‘representante do Conselho Federal de Psicologia na campanha antibaixaria na TV da Câmara’, do qual se obtém a seguinte frase: ‘Se para adultos é difícil resistir ao apelo publicitário, imagine para crianças’. Suas palavras, além de repisarem o argumento que circula por toda reportagem, apenas tangenciam outro fato que parece importante notar: ambos – adultos e crianças – caem nas malhas da publicidade com pouco poder de reação crítica. Esta é uma constatação empírica e de comprovação relativamente fácil.

Outro exemplo

O texto da Folha, excessivamente focado na ênfase das aos prováveis malefícios sobre as crianças – e, para isso, valendo-se da contraposição entre o discernimento adulto e a inocência infantil – parece esquecer que uma parte considerável das propagandas veiculadas na mídia produz efeitos de ordem bem sutil, ao contrário do que poderia parecer a princípio. Na verdade, diante da exposição sistemática a determinado material publicitário, um adulto vai se comportar de modo muito diferente daquele suposto sujeito fortemente racional, e por isso mesmo ingenuamente idealizado, que seria capaz de, a todo momento, perceber o que está em jogo na dinâmica de um comercial. O adulto, assim como a criança, vai ser tocado lá onde as luzes da razão não costumam fazer diferença: nas camadas inconscientes de seu desejo, formados, aliás, por sedimentos de fases remotas do desenvolvimento infantil.

Na reportagem, há exemplos de comerciais que foram considerados abusivos, como o de ‘um chocolate no qual um menino, só para ganhar o doce, diz falsamente: ‘Sabia que você é o melhor avô do mundo?’’. Neste caso, mesmo que o comercial só fosse exibido fora da faixa de horário das 7h às 21h (como propõe o projeto de lei brasileiro), isto não bastaria para anular os efeitos da propaganda sobre o avô.

Ao assistir ao comercial, não é difícil imaginar que ele fosse capaz de dizer para ele mesmo algo tão óbvio quanto: ‘O meu neto continuará gostando de mim do meu modo que antes, ainda que eu não compre tal chocolate para ele’. Contudo, ainda que capaz de tal ponderação, como a maioria dos adultos o avô teria um encontro marcado não com a sua capacidade de discernimento, mas com os rigores de seu próprio narcisismo.

Digamos, de modo bem simplificador e apenas a título de exemplo, que o avô experimente ao ver a propaganda, uma inquietação que ele terá dificuldade de entender e de nomear. No fundo, ela corresponde às reivindicações inconscientes de elementos de sua própria história; algo traduzido grosseiramente por pensamentos ou sentimentos tais como ‘propiciar ao neto algo que ele próprio não obteve quando criança’ ou ‘ter a impressão de encontrar uma via de contato afetivo com o neto, quando os canais de contato com a mulher e filhos lhe parecem insuficientes ou deteriorados’ ou qualquer outro exemplo que desperte algum aspecto de nossa sensibilidade, ative nossos fantasmas inconscientes e aponte uma saída, ou sintoma, instantâneos traduzidos neste caso pela susceptibilidade ao apelo publicitário.

Claras e escuras

A tarefa então, não é apenas a de compreender os riscos implícitos ao reclame infantil, mas também a de atentar para o fato de que adultos e crianças são igualmente fisgados quando fascinados por uma isca que, por assim dizer, ilude o bom senso.

O adulto, por mais crítico, racional, ou vigil quanto às luzes sedutoras da propaganda, morde a isca com a mesma voracidade e gosto que uma criança o faz; e exatamente porque ele será mobilizado num ponto onde seu psiquismo funciona de acordo com leis diferentes das que predominam na superfície da consciência.

O ‘Mamãe, eu quero!’ pode parecer pueril ao adulto maduro; mas mal sabe ele que muitas vezes, e mais uma vez, em águas claras ou escuras, a propaganda fisga o seu consumidor.



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Em 21/10/2006 teve seguimento o debate em torno da regulamentação da publicidade infantil na seção Tendências/Debates do caderno principal da Folha de S.Paulo. Embora no artigo ‘Que crianças queremos formar?’, Guilherme Canela tenha atentado para algumas das repercussões da publicidade sobre a formação dos jovens, o tema de nosso comentário permaneceu intocado.

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Médico psiquiatra, psicanalista e professor de psicologia da PUC-Rio