Por vezes sou um curioso leitor dos pequenos anúncios. Nessa atividade, observo que apesar de não serem um objetivo da mídia escrita, porque ali não há interferência de editores e jornalistas, os pequenos anúncios não apenas são um bom retrato do que se passa na sociedade – neles figura tudo o que se compra e se vende, tudo o que se acredita ter algum valor no mundo real –, como demonstram e denunciam os empresários da mídia na relação que mantêm com o mundo dos negócios, nem sempre preocupados com o que erigem como a ética de seu trabalho e de sua produção.
Todos os grandes jornais, apesar de perseguirem um conjunto de princípios, de se dirigirem por determinadas vias aceitas no mundo da mídia como desejáveis, buscando fidedignidade, profundidade, clareza, respeito ao leitor etc., quando lidam com seu universo de faturamento, representado por seus cadernos de pequenos anúncios, em geral lidam com um mundo obscuro e sinistro – do repasse de coisas roubadas, do estelionato, da prostituição infantil, da prostituição e seus agenciadores, da pornografia grotesca, de tudo o que, também, há de mais sujo no mundo real.
Armadilha de golpistas
Recentemente, os casos de estelionato, golpes e fraudes têm se avolumado tanto que os jornais vêm se preocupando em alertar seus consumidores sobre a necessidade de certificação das informações.
Mas não passam disso. Se o mundo dos pequenos anúncios é um bom retrato social do que desejam as classes sociais brasileiras, com destaque para os automóveis de luxo, os garotões bem dotados e as mocinhas a vender seus serviços parciais ou completos, senhoras corolas em meio a tudo isso continuam publicando suas rezas e graças alcançadas (coitadas, para ler as rezas têm que passar pela prostituta que faz sexo com casais, o travesti ativo ou passivo, sempre próximos dos anúncios de graças e orações). Os pequenos anúncios são também a denúncia mais consistente de como a mídia escrita organiza sua carteira de faturamentos a partir de serviços sórdidos, de negócios escusos, de estelionato.
Nesse campo, os jornais não se alinham em manuais, não se pautam em qualquer ética, não buscam sequer poupar os consumidores dos negócios pantanosos, que sempre cheiram mal. Se pretendessem minimamente alguma ética, alguma segurança, aboliriam anúncios de vendas só por celular – reiteradamente usados como armadilha de golpistas; certificar-se-iam sobre agenciadores de serviços de prostituição por trás das famosas casas de massagem – atividade criminosa que nem precisa de ser verificada por pruridos morais ou ímpetos de censura, mas porque agenciar prostituição é crime; poderiam pôr graças e orações das senhoras religiosas mais afastadas das mocinhas turbinadas etc. etc.
Terra de ninguém
Nos pequenos anúncios mora o perigo, chafurda o negócio por vezes tão investido de ética, revela-se a sociabilidade em sua rede de relações com os objetos de desejo de um tempo, delata-se a precariedade dos pressupostos éticos dos empresários da mídia que vivem também do faturamento na intermediação de atividades sujas – e enrola-se o consumidor, vitimado por tanta bandalheira do deus-mercado. Aliás, os pequenos anúncios podem ser vistos como o campo mais livre da imprensa brasileira, cujo único motor é o interesse: neles tem de tudo, para o bem e para o mal, para quem quer se achar e quem quer se perder.
Que tal um debate sobre os pequenos anúncios, a relação da mídia escrita com seus caderninhos fora dos manuais, sempre pautados pela força exclusiva do vil metal? Nesse evento poderiam figurar delegados de delegacias especializadas, com certeza capazes de reconhecer a força dos pequenos anúncios nas queixas que recebem, o Ministério Público, alguma velhinha que pena para ler sua publicação de oração a São Judas em meio a tanta ménage à trois, alguma vítima de estelionato fisgada pelo anúncio em jornal, gente ligada à questão da ética nos negócios, e até editores de jornais que se pautam por compromissos éticos, quem sabe para explicar por que os pequenos anúncios passam longe dos compromissos e rigores e servem tanto a lesar, promiscuir, prostituir, ludibriar.
Claro, adoro os pequenos anúncios. Leio-os com prazer, neles encontro tudo de valor, mas viraram terra de ninguém.
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Funcionário público