A censura aos 30 cartazes, retirados das ruas de São Paulo por ordem do prefeito José Serra na semana passada, deu à mídia uma excelente oportunidade de discutir direitos e deveres do cidadão numa sociedade democrática, o ‘pode-não-pode’ das autoridades, justificativas para atos publicitários ousados e o recurso à censura por parte do poder público.
Mas a mídia, como vem fazendo com reiterado desespero nos tempos que correm, enfatizou os caminhos fáceis do escândalo, da denúncia e das medidas tomadas pelas autoridades, dedicando à reflexão que o conjunto de atos demandava pequena parte do noticiário.
Temas policiais e judiciários, principalmente nos últimos cem dias, vêm sendo a matéria-prima de jornais e revistas, por força das CPIs em andamento. Para cada tonelada de denúncias, todas muito parecidas, para não dizer iguais, há meio quilo de novidade, se tanto.
Ora, é preciso, no mínimo, relacionar o ato do prefeito, derrotado nas últimas eleições presidenciais e candidato a suceder o atual presidente, com a onda de denuncismos, de inconformidades, de sérias desconfianças da população nas instituições da República. De olho no Parlamento, por força da obsessão da mídia com as CPIs, a população sente um cheio de orégano no ar. Se as CPIs acabarem em pizza, ninguém pode prever o que a sociedade organizada fará. Os cidadãos corretos e probos vão continuar a pagar impostos, sabendo o destino que têm?
Ressalva apropriada
E o que acontece simultaneamente? O futebol, paixão nacional, é aviltado pela descoberta da revista Veja de que os resultados eram manipulados por árbitros a serviço de uma jogatina que manipulava os resultados! Judiciário com juízes ladrões, alguns deles já cumprindo pena em domicílios ou em cárceres, o povo suportou. Mas suportará o juiz ladrão no futebol? Na verdade, a expressão ‘juiz ladrão’ mudou: não foi utilizada pela revista Veja, por exemplo, no sentido que aparece nas crônicas de Nelson Rodrigues.
Sérgio Rodrigues, em No Mínimo escreveu:
‘O juiz ladrão é um personagem rodriguiano. Entre os tipos mitológicos com que Nelson Rodrigues povoou o futebol brasileiro, um dos que tratava com mais carinho era o juiz vigarista, com sua – palavras do cronista – ‘feérica, irisada, multicolorida variedade’. Sim, Nelson gostava do juiz ladrão. Dizia que ‘a virtude pode ser muito bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais’, como escreveu em 1955 na crônica intitulada, justamente, ‘O juiz ladrão’, pinçada por Ruy Castro da revista Manchete Esportiva para a coletânea À sombra das chuteiras imortais (Companhia das Letras)’.
Mas fez a ressalva apropriada:
‘Não, não é provável que Nelson Rodrigues saísse em defesa de Edilson Pereira de Carvalho, o juiz venal apanhado em gravações humilhantes’.
E anotou a frase de Nelson – ‘As condições do futebol contemporâneo tornam impraticável a existência do canalha’ –, para concluir: ‘Estava enganado, como se vê’. Foi o melhor texto da semana sobre o juiz ladrão a serviço da máfia que controlava os resultados dos jogos.
Efeito diferente
Embora não tenha sido feita com método a ligação entre os vários temas, o leitor atento por certo não deixou de relacionar algumas preocupantes, pois a censura é tema recorrente na vida brasileira. Na mesma semana em que José Serra mandou retirar os cartazes obscenos, a juíza Flávia de Almeida Viveiros de Castro, da 1ª Vara Cível do Rio, recusou-se a censurar o cantor Lobão, a quem o empresário Daniel Birman queria calar, com o fim de que ele não pudesse dar a versão das confusões ocorridas no início do mês em Porto Alegre. ‘Não pode um cidadão vir ao Judiciário e demandar que este amordace outro cidadão’, disse a juíza. Destaque-se, de passagem, as arrojadas decisões de juízas, uma das quais, Denise Frossard, é hoje deputada federal, graças à fama instantânea que a mídia lhe deu com o episódio da prisão dos patriarcas do jogo do bicho.
Na mesma semana, uma rádio de Brasília recusou-se a tocar a música Vossa Excelência, dos Titãs, cujos versos, além de utilizar o palavrão mais conhecido da língua portuguesa, diz coisas graves como estas: ‘Estão nas mangas dos senhores ministros,/ Nas capas dos senhores magistrados,/ Nas golas dos senhores deputados,/ Nos fundilhos dos senhores vereadores,/ Nas perucas dos senhores senadores’. (Por não ser proferido por Zé Bebelo, durante seu julgamento pelos cangaceiros liderados por Joca Ramiro, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, o silenciamento impede que ele seja sangrado, afinal não disse o nome da mãe do outro.)
A rádio que vetou os Titãs não procurou o Judiciário. O prefeito José Serra, em vez de procurar o Judiciário, procurou sua assessoria jurídica. Mas nos dois casos o efeito é diferente, embora sua base seja a mesma, a censura. Dos três casos, o único que recorreu à Justiça foi o empresário que se insurgiu contra Lobão.
O ‘jeito de fazer’
Aos resultados. Quem quiser ouvir os Titãs, pode sintonizar qualquer outra rádio ou comprar o cedê. Os Titãs e Lobão mereceram poucos destaques, limitados a notinhas em colunas. Mas o ato do prefeito José Serra teve julgamento público imediato, não apenas porque não é bem assim retirar cartazes na maior megalópole do país! Foi uma atitude complexa e ousada. E o governante colhia na seqüência a aprovação da medida, que certamente tomou apoiado em consultas a seus secretários. De todo modo, os cidadãos querem isso mesmo, que os eleitos saibam escolher bem seus auxiliares. E eles lhe deram, entre as várias opções legais, a mais eficaz. Seria igualmente legal, mas mais demorado, recorrer antes ao Judiciário.
No domingo (25/9), a corrida de Fórmula I, evento que motivou os cartazes das casas noturnas, ainda não começara (começou às 14h, tendo os resultados combinados levado o espanhol Fernando Alonso a ser o mais jovem campeão da categoria em todos os tempos), quando uma enquete de O Estado de S.Paulo apresentava as respostas à pergunta: ‘A atitude do prefeito José Serra, de retirar os outdoors que incitariam o turismo sexual, foi correta?’ – 86,87% responderam sim, e apenas 13,13%, não.
Medida polêmica, como todo ato de censura, por mexer com a liberdade de expressão, um bem público sagrado, garantido pela Constituição, o ato do prefeito gerou protestos. ‘Uma comunicação ao Conar produziria o mesmo efeito’, disse Emmanuel Publio Dias, professor e diretor de marketing da ESPM. Isto é, o professor deixou implícito que os cartazes seriam efetivamente retirados, mas quis preservar o modus operandi, que é como os advogados gostam de definir o brasileiríssimo ‘jeito de fazer’. Afinal, a sociedade tem meios de coibir excessos dentro da lei.
Fresta problemática
Já o publicitário Lula Vieira pôs o dedo no centro da ferida:
‘Os olhos do mundo (120 mil turistas, 300 milhões de espectadores em dezenas de países) estão voltados para São Paulo durante o GP de F-1. Os outdoors evidentemente obscenos, degradantes para as mulheres e vergonhosos para a cidade, deveriam ser retirados rapidamente’.
Gilberto Leifert, presidente do Conar, aprovou a medida do prefeito. Em cartas de leitores, publicadas pelo Estadão, todos os leitores, menos um, aprovaram o gesto do prefeito.
Mas a mídia, especialmente jornais e revistas, deixou passar excelente oportunidade de prestar serviços mais qualificados aos cidadãos-leitores, como se eles, nos fins de semana, também fechassem suas consciências ao entardecer de sexta-feira para reabri-las na terça-feira, junto com os jornais concluídos na segunda-feira.
E por fim lembremos que a publicidade nos uniformes, decisão do mesmo prefeito, foi questionada pela mídia, com o fim de evitar que as crianças fizessem propaganda de empresas. Poucos lembraram que as crianças são obrigadas a ver cartazes obscenos. É diferente da questão do veto nas rádios, que ouve quem quer. Cada vez mais bonitos, do ponto de vista da criatividade, pois há uma nudez que não ofende, do contrário estaríamos até mesmo contra o Renascimento, os cartazes entretanto obrigam todos a contemplá-los. É nessa fresta problemática que o poder público interveio.