Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Publicidade, uma atividade questionável

Pela expressão ‘agências de publicidade’ abrangerei todo o emaranhado de empresas de marketing, de eventos, de ‘planejamento político’, de advocacia de interesses etc. reunido em torno da atividade propagandística.

O papel da publicidade na história recente do país tem sido imenso, e acredito que exija discussão. Não é minha pretensão esgotar tema tão complicado nas presentes maltraçadas, mas gostaria de externar preocupações que, acredito, são justificadas face ao efeito produzido por essa atividade não apenas na esfera pública como, também, na privada e sobre a vida das pessoas.

1. Inicio por observar o que todos sabem: a publicidade é uma atividade de intermediação. Agências de publicidade contratam serviços de terceiros em nome de seus clientes. Esses serviços dão-se em duas pontas – produção (design, modelos, redação, fotografia, computação gráfica etc.) e veiculação. As massas de dinheiro que circulam pelas agências são originadas dos clientes e repassadas aos terceiros que prestam os serviços propriamente ditos.

As agências remuneram-se de várias formas: primeiro, oficialmente, por porcentuais calculados sobre os custos de veiculação cobrados aos clientes; segundo, por um mecanismo chamado ‘bonificação por volume’, apelidado ‘BV’, espaços que veículos proporcionam às agências como prêmio por terem sido programados nas campanhas dos clientes.

Esse apelido de ‘BV’ estende-se a remunerações fraudulentas, obtidas por propinas que são cobradas tanto de veículos (por inserir os anúncios) quanto de fornecedores (por serem escolhidos para prestar serviços), e incluídas nas faturas que os clientes pagam. Há ainda, às vezes, processos de faturamento fictício por parte de veículos, gerando comissões indevidas pagas às agências. E não são desconhecidos casos em que diretores dos clientes recebem propinas de agências em troca de aprovar campanhas e/ou veículos.

De toda forma, mesmo que este último mecanismo fraudulento seja ocasional, a cobrança de propinas é a praxe do setor publicitário, como completamente conhecido por qualquer pessoa que já tenha passado perto do tema.

2. O que foi declarado acima será negado por publicitários com previsível veemência. Deixo de antemão a sugestão de que agências usem seus BVs para comprar 10 horas de programação da Rede Globo para, durante essas horas, submeter o assunto dessas comissões ilícitas a uma discussão televisada de que participem fornecedores, clientes, veículos e jornalistas.

3. A justificativa conceitual para a existência da atividade publicitária é econômica. Ela deriva diretamente da necessidade, para a eficiência econômica de um mercado, que consumidores conheçam as características dos diferentes bens e serviços que adquirem, de forma a serem capazes de fazer comparações racionais e decidir, racionalmente, qual aquisição melhor satisfará a suas necessidades.

É por isso que publicitários sempre afirmam que a publicidade é um ‘direito’ do consumidor. Omitem convenientemente o fato de que a última coisa que os publicitários desejam que o consumidor receba é informação objetiva sobre o que propagandeiam. Informação objetiva – a saber, prós e contras de produtos, serviços, candidatos – é coisa muito diferente da atividade de apelar para ‘a emoção’ do consumidor e assim seduzi-lo em favor deste ou daquele produto, serviço ou candidato.

Publicitários são os príncipes do embuste, especializados em esconder do público aquilo que constituiria as informações mais relevantes para uma decisão racional, hipervalorizando aspectos favoráveis e, não raro, peculiaridades totalmente irrelevantes para a decisão racional. De outra forma, não haveria motivo para vender cerveja pela exibição das carnes de boazudas.

4. Para essa fraude contribui valentemente toda uma estrutura de pseudo-regulação. Os publicitários exibem, orgulhosamente, seus organismos de auto-regulamentação como se fossem mecanismos de proteção do consumidor. É claro que não são. Se o fossem, puniriam anunciantes que empregam imagens enganosas (além das boazudas há evidentemente outros embustes) para vender seu peixe. O que a auto-regulamentação auto-regula são os conflitos entre agências de publicidade.

Influência notória

5. De alguns anos a esta parte, a publicidade passou a invadir a área de comunicação como um todo. Publicitários deixam de ser publicitários e se transformam em ‘profissionais da comunicação’. O ‘malho’ que dão sobre seus clientes (expressão corriqueira no meio, e que mostra bem as reais intenções em jogo) hoje inclui tudo o que próxima ou remotamente diga respeito à veiculação de informação, de qualquer tipo. Relatórios de empresas, manuais, assessoria de imprensa, editoração, tudo vai de trambolhão.

Evidentemente, isso reduziu enormemente o mercado de trabalho de profissionais de comunicação propriamente ditos, além de reprimir os preços – pois as agências só intermediam essas encomendas, passando-as a fornecedores contra o pagamento da propina do BV. Ainda mais gravemente, como agências de publicidade não têm idéia remota do que seja informação objetiva, uma vez que a cabeça dos publicitários é voltada para iludir, e não para informar, o resultado é a gravíssima contaminação da comunicação pelo ‘malho’ mercadológico. Essa é uma moléstia que faz um mal terrível à mente do público, o qual resulta cada vez mais deseducado.

6. A ‘comunicação’ de governos é hoje só isso: propaganda despudorada travestida de prestação de informação. O poder corrosivo da publicidade na área política, que se inicia nas campanhas eleitorais e se estende para as injustificáveis verbas publicitárias de organismos públicos (que, como se vê, prestam-se idealmente à lavagem de dinheiro), passam também pela própria formulação de políticas.

É notória a influência de um publicitário famoso na formulação de estratégias do presente governo. Como, exatamente, um país pode ser apresentado como sério quando publicitários cumprem tal papel?

Influência mefítica

7. Personagens sinistros circulam entre empresas, agências, funcionários públicos, imprensa, traficando notícias (ou supressões de notícias) por dinheiro, posições, influências. Embora não sejam apenas publicitários que o façam, estes são idealmente talhados para esse troca-troca, dado que seu negócio é intermediar.

8. Não existe notícia de alguma licitação pública na área de publicidade que não seja direcionada. Alguém alguma vez ouviu dizer de uma agência que fez campanha de um candidato majoritário vitorioso e que não tenha depois vencido licitações para as contas publicitárias dos governos correspondentes? Isso acontece porque tais licitações se fazem na modalidade chamada de ‘técnica e preço’, em que a decisão se faz pelo julgamento subjetivo da ‘técnica’. Mas que raio de ‘técnica’ há nessa atividade? São todos a mesma coisa.

9. Há três formas de reduzir os prejuízos ao interesse público que acompanham a disseminação da publicidade. A primeira é distinguir entre o que é publicidade e o que é comunicação objetiva. Só isso já produziria salutaríssimos benefícios. A segunda é cortar drasticamente as verbas destinadas à publicidade à disposição dos governantes. Em síntese, proibir que façam propaganda. A terceira é eliminar da lei de licitações a própria possibilidade de se conduzirem licitações por técnica e preço.

Contrabalançar a influência mefítica da mentalidade e das práticas publicitárias na esfera pública muito fará em favor da moralização dos costumes no Brasil.

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Jornalista, diretor-executivo da Transparência Brasil