Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando a mentira tem perna longa

Neste mesmo espaço do Observatório da Imprensa contei em abril a história do sr. Francisco Copertino de Miranda no artigo “Um Frescor Vindo do Passado”, tirado de seus anúncios publicados em 1857 no primeiro jornal paranaense, o Dezenove de Dezembro. No seu primeiro anúncio, o Sr. Francisco se apresenta aos leitores e coloca à disposição seu comércio – tipo armazém – no centro de Curitiba. Passado uns tempos e outros anúncios, ele publicou um “reclame” dirigido ao ladrão que roubava parte de seus tonéis de vinho, substituindo-o por água, fato que acontecia frequentemente no trajeto do transporte do vinho que provinha do Rio de Janeiro passando pela vila de Morretes. O que faltou na ocasião foi completar o relato esclarecendo o que aconteceu com as barricas adulteradas que “micaram” na mão do comerciante. Naqueles tempos em que a defesa da honra era prioridade absoluta, teria coragem de vender seu produto batizado? Sim, como bom comerciante, seu Francisco precisava minimizar os prejuízos. Então publicou outro anúncio (4/2/1857) no mesmo jornal:

“No largo da Matriz n.A tem superior vinho Lisboa com água recentemente chegada de Morretes.”

Recorde-se que em 1857 o Brasil era um país muito jovem, tal como seu imperador D. Pedro II, e que o comércio de escravos vigorava descaradamente. Os jornais estavam se expandindo fora da corte e as propagandas nesta mídia começavam a engatinhar. O anúncio do seu Francisco é curto, mas direto porque estava oferecendo um produto conhecido do público, isto é, um bom vinho importado de Portugal, indicado pelo termo “superior”. Sobretudo, honesto porque esclarece que o vinho era aguado, confirmando que, sem dúvidas, seu Francisco era um homem honrado. Interessante que é incógnito, fornecendo apenas o endereço do estabelecimento que vendia tal vinho. Naqueles tempos, provavelmente o honrado anunciante tinha medo de colocar seu orgulhoso nome em vão.

Quem é esse “você”?

Fiquei tão fascinado pela honestidade do seu Francisco que, munido de caneta esferográfica e papel, fui para a frente da televisão observar se nossos anúncios atuais são tão honestos como o dele. Que decepção! Hoje em dia, a regra geral para um comercial “pegar” é colocar nele farpas mentirosas, slogans aguados e imagens falsas. Na guerra das cervejas vale tudo, desde acompanhar a trajetória de uma gota que desce pelo dorso monumental de uma garota e depois de chegar a lugares bacanas, novamente subir dando aquele fabuloso arrepio na moça, ou ainda, cavar um túnel impossível através do centro do planeta nos unindo com o Japão, ver uns siris carregando o marcador da trave para que um cara acerte o gol, mulheres fenomenais se exibindo com um copo de cerveja e outras coisitas mais. Outro dia teve até um comercial usando um palavrão apelativo para chamar nossa atenção para sua cerveja. Ninguém diz que o álcool é uma das substâncias mais perniciosas para a sociedade. Aliás, aquela advertência institucional no final do comercial já virou rotina e não chama mais tanta atenção. Quem sabe colocá-la no início? Já repararam nos processos misteriosos contidos ou fabricados com eles nos produtos anunciados geralmente em inglês? Ou a explicação de que a tal cerveja foi destilada pelo método do 360 graus e o refino da outra a menos dois graus centígrados? Alardeiam que são diferenciados, mas não explicam por quê. Por falar em anúncio de venenos que matam, lembram-se das propagandas visualmente perfeitas para os cigarros? Pois é, o cigarro matou até ator que representava nos comerciais televisivos o homem do Marlboro.

Há também a tentativa de personalizar o que é coletivo. Nossos comerciais não conseguem atingir importantes grupos como as mulheres ou os negros e muito menos o indivíduo isolado. Usam então o “você”… Quem é esse você? Eu? A Chevrolet diz “você em primeiro lugar”. Mentira! Já fui numa concessionária que estava com todas as baias ocupadas por conta de uma promoção e não me atenderam prontamente. Pacientemente, tive que esperar minha vez. “Avon traz o mundo para você!” Outra balela, porque minha mulher compra Avon e nunca saiu do país (perdão, uma vez fomos ao Paraguai), ou literalmente, nenhum lugar veio até ela… A Rexona “não te abandona”. Se tivesse o produto, teria que andar com ele no bolso? (Está certo, estou sendo maldoso porque eles querem dizer que o desodorante nunca vence… Será?) “Bradesco: lado a lado com você!” Quem sempre está ao meu lado, o gerente? Eu, hein! Garanto que não, pois se nem sou cliente do banco! E “o Itaú muda com você” também não cabe, porque nunca me perguntaram nada que eu pudesse influenciar a rotina do banco. E se lá na matriz o banco muda alguma coisa, nem fico sabendo. E a própria Globo nos diz que “a gente se liga em você”… Posso afirmar sem medo de ser processado que a Globo não se importou comigo. É mentira porque nunca me ligaram e minha relação com ela é assistir unilateralmente à programação comum. Aliás, a única vez que liguei para o departamento jornalístico da emissora fui mal atendido porque o assunto (guerra das Malvinas, que expliquei também neste espaço do Observatório da Imprensa: “O Dia que Vimos Começar Uma Guerra”) era complicado.

Uma inverdade matemática

Os dentifrícios fazem questão de anunciar a preferência dos dentistas para sua marca. A Colgate afirma que é a “marca número um em recomendação dos dentistas”. A Oral B é mais abrangente e diz que é a “marca mais usada pelos dentistas no mundo”. Eu sou dentista e nunca usei a Oral B, e a pasta Colgate, por ser mais popular e barata, devo ter usado todos os tipos anunciados, mas não me lembro de ter notado alguma alteração nos dentes, além da higiene normal.

As seguradoras anunciam seus serviços mostrando pequenos sinistros porque – acho − os grandes chocariam a opinião pública. Pois são justamente estes que não são cobertos pelos seguros por causa da franquia.

A Harpic garante que seu produto é cinco vezes mais poderoso. Já o sabonete Dettol é dez vezes mais poderoso. São produtos diferentes, mas na era da relatividade ninguém explica o parâmetro usado: como calcularam a poderosidade e por que são poderosos, e em relação a quê? Porque o Super Homem também é poderoso pra caramba!

Uma rádio de Curitiba anunciou pela televisão um concurso que – entre outros prêmios do gênero – daria uma estadia num hotel junto com um grupo de marmanjos pagodeiros. Pode ser, mas eu estou fora desta!

E a Coca Cola, que papelão! No comercial da Coca Cola Zero eles dizem que “quanto mais zero, melhor”. Matematicamente uma inverdade porque adicionando zero com zero – por maior quantidade que seja – a soma continua sendo zero. Talvez eles estejam usando um jogo de palavras para dizer que quanto mais Coca Zero, melhor. Então seja claro, cara pálida, porque a nossa educação formal não é essas coisas. Na mesma linha, o Dettol diz ser de “confiança absoluta”. Perdão por discordar, porque ainda acredito que confiança absoluta só em Deus. Já o Itaú se diz “o Banco mais sustentável do mundo”. Quero me convencer que não entendi direito se tal sustentabilidade refere-se aos proventos necessários para o sustento da família da chefia.

A vingança que nos resta

Há uma tendência na publicidade de que aquilo que deu certo deve ser copiado. Lembram-se da Brahma, que era a número um, e a Antártica, a primeira? E que todos querem ser uma Brastemp – que, em outras palavras, significa marca de qualidade –, inclusive a mãe Coca Cola? Por falar nisto, o que estará acontecendo com a eficiência da propaganda da marca de refrigerante mais famosa do mundo? Não estaria faltando uma investida mais contundente da Pepsi, que anda meio apagada? Com raras exceções não se anuncia um produto descrevendo suas vantagens e qualidades diferenciadas em relação a outros do mesmo gênero. O que fazem questão de divulgar é sua marca. O Itaú tem aquele movimento com o dedo formando uma arroba com i dentro, mas o principal concorrente, o Bradesco, já deu sua copiada legal fazendo com o mesmo gesto duas paralelas de tamanhos diferentes.

Por tudo isso sou mais seu Francisco. Seu anúncio é simples, curto e direto. Descreve seu produto com clareza, é absolutamente honesto e, como não coloca nem seu nome nem sua marca, se surgir algum interessado no seu vinho aguado, que vá conferi-lo no endereço indicado.

Quanto às pernas curtas das lorotas dos comerciais, não há solução. Elas são devidamente esticadas pela televisão e correm para os lugares longínquos para chamarem a atenção do telespectador. Dizem que assim pagam as televisões aberta (e ajudam render um pouco mais na TV pública e nas pagas) e ainda geram lucros e empregos para as agências de publicidade, emissoras e provedoras.

O consumidor que se dane! Mas resta-nos uma vingançona: como são repetitivos e chatos, na hora do comercial podemos bater um papo com a família, fazer uma merendinha ou descarregar o xixi.

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[Luiz Ernesto Wanke é aposentado, Curitiba, PR]