Corações e Mentes é o título de um documentário sobre a guerra do Vietnã, exibido nos anos 1970. Fosse produzido no início do século 21, em solo brasileiro, talvez retratasse outro embate: o da guerra das cervejas.
Tudo começa quando um sambista abandona sua marca preferida de cerveja (Brahma) pela concorrente (Schincariol), aconselha aos demais a fazerem o mesmo e, sob irrecusáveis 3 milhões de reais, muda de opinião e volta à predileção inicial. A trama, aparentemente banal, é por demais significativa para ser ignorada por quem se propõe a analisar o discurso noticioso em suas interações com o marketing.
Campo tensional por excelência , jornalismo e publicidade sempre viveram uma relação de complementaridade conflitiva. Se a convivência era necessária, em que momento haveria o risco de um vir a ser confundido com o outro? Quando o discurso noticioso, despido de suas fantasias de objetividade e isenção, tomaria o fato publicitário como objeto jornalístico? E mais, ainda, o roteirizariam como um caso de amor, tal como pretendiam os anunciantes?
O amor romântico, concebido na renascença, não envolve apenas o casal enamorado. Cala fundo no imaginário e enlaça a todos nas juras, desditas e desventuras dos amantes. A empatia da narrativa folhetinesca prende a respiração de quem a lê ou ouve. Impossível ficar indiferente. Afinal, sejamos sinceros, quem nunca teve um amor de verão? Tão insensato quanto fugaz, até encontrar aquele que, por ser o verdadeiro, redefine sentidos e restitui a inteireza afetiva do apaixonado.
A trama mais recente que envolveu o noticiário conteve todos os ingredientes requeridos pelo gênero: traição, arrependimento, reconciliação e imprecações da amante abandonada. Ocupou espaços generosos nas primeiras páginas dos principais jornais, produziu reflexões supostamente éticas em colunistas entediados e análises formuladas a partir de várias angulações. Grosso modo podemos dizer que, ao longo da semana, Zeca Pagodinho não mais experimenta, a Ambev o espreme, a Schin espana e a imprensa espuma. Subsumido pelo marketing que parece anunciar o fim da intermediação, o jornalismo se assume como apêndice.
Talvez tais episódios reflitam um processo mais amplo. O fetichismo da mercadoria que alcança o campo jornalístico não é um acontecimento súbito. Basta uma leitura rápida nas editorias de economia para observar a qualidade da análise produzida pelos articulistas mais renomados, bem como o tratamento dispensado ao noticiário macroeconômico. Índices e categorias são tratadas como manifestações concretas, explicáveis per si, dispensando qualquer referência ao contexto histórico em que são produzidas.
Elementos catárticos
Talvez seja o caso de relembrar o alerta de Marx: ‘As categorias econômicas não são mais que abstrações das relações sociais’; ou , referindo-se à hipóstase da economia burguesa que se pretende natural, denuncia economistas que percebem as leis econômicas como ‘leis eternas que devem reger sempre a sociedade. De modo que até agora houve história, mas agora já não há ‘(Miséria da Filosofia).
Há mais de 150 anos, o surrado materialismo histórico prenunciava o surgimento do pensamento único. Se alguém pretende ler uma coluna, que, sob um pretenso didatismo, nada mais faz que entronizar os axiomas do capitalismo financeiro, deve visitar ‘Panorama Econômico’ do jornal O Globo. Desconfiem da clareza do texto. Às vezes simplicidade implica simplificação grosseira. Renúncia à análise e entrega do espaço a consultores de corporações e bancos de grande porte.
O mesmo fenômeno, mantidas as singularidades de cada esfera, se repete nas editorias de política e economia. Reproduzindo as demandas do mercado, os principais comentaristas clamam pela previsibilidade desejada pelo capital. A racionalidade política passa a ser avaliada pelas reações da bolsa ou oscilações cambiais produzidas por declarações dos atores mais relevantes. O estadista sensato é aquele que tranqüiliza o capital volátil e facilita o cálculo econômico. Podemos concluir que, por essa postura, tais seções deveriam ser conhecidas como espaço editorial da não política.O devir cedendo espaço a considerações econométricas
Ora, tais movimentos se dão em um dos campos simbólicos que possibilitam a hegemonia neoliberal. Se houve épocas em que uma autonomia relativa era possível, parece que tais momentos fazem parte de uma fase heróica que não mais subsiste. Assumindo-se como complexos empresariais, despidos de qualquer veleidade de ser regida por outra ótica que não a meramente mercantil, jornais e o noticiário produzido por eles revelam-se como unidades mais simples do capitalismo: mercadoria. Assim, como algo a se tornar imediatamente disponível para consumo, torna-se presa fácil dos artifícios do marketing. A única surpresa, e é nisso que reside a singularidade da guerra das cervejas, é a transformação do publicitário em pauteiro.
Tomadas como fato jornalístico, as duas campanhas merecem tratamento caprichado, como um dado político que não deve ser ignorado. As correlações estapafúrdias chegam a comparar um suposto desvio ético do sambista que troca de marca à postura do governo petista. A jornalista Cora Rónai escreve em sua coluna no Globo:
‘Não sei se um atentado a uma marca de cerveja merece tanto auê, mas uma coisa é certa: ninguém agüentava mais falar na Luma! Com mais uma semana de papo sobre a gravidez da Luma, o casamento da Luma, a coleira da Luma, a calcinha da Luma, o divórcio da Luma, os bilhões da Luma, o bombeiro da Luma ou o lume da Luma, corríamos todos o risco de ficarmos definitivamente sem assunto e, horror!, termos que discutir na mesa do boteco temas como a venda da Embratel, o caso Gtech, a CPI dos bingos, a política econômica ou a psiquê do Palocci. O que seria de nós sem a traição de Zeca Pagodinho?! Graças à providencial guerra das cervejas, pudemos enfim virar o disco e continuar, felizes, a jogar conversa fora sobre assuntos aparentemente sem importância. O que é – sem brincadeira – extremamente importante. É mais fácil e menos prejudicial à saúde e às amizades discutir ética, traição e valores morais de modo geral através da atitude de uma Luma ou de um Zeca Pagodinho do que, digamos, através de um governo do PT, eleito num dia para renovar a cena nacional e, no dia seguinte, já entregue, sem traumas, a Sarneys, ACMs e outras figuras que, em tese, julgávamos varridas pelas urnas.’
Luma e Zeca Pagodinho seriam, segundo a jornalista, figuras em quem sublimaríamos nosso suposto descontentamento com a política. Serviriam como elementos catárticos para calar divergências mais profundas que tanto poderiam fazer mal à saúde e às amizades. Benditos sejam Nizan Guanaes e Eduardo Fischer, responsáveis que são pela nossa estabilidade emocional.
Amor possível
Outra questão intrigante é a remissão ao campo ético das estratégias publicitárias das agências e do sambista garoto-propaganda. Na edição online da Folha de S.Paulo, lia-se no dia 12 de março:.
‘Na propaganda da Brahma, Zeca canta uma música em que afirma que seu ‘amor de verão’ terminou e decidiu retornar para o ‘amor antigo’, em alusão à mudança de cerveja.
Segundo o publicitário Nizan Guanaes, da Agência África, Pagodinho foi escolhido porque ‘traduz’ a mensagem da canção sobre um ‘amor de verão’, com o qual a pessoa se envolve para depois descobrir que o ‘amor antigo é que era de verdade’.
O publicitário Eduardo Fischer, presidente da Fischer América, dona da conta da Schincariol, disse que vai se reunir com seus advogados para estudar as ações cabíveis. Ele considerou entrar com ação na Justiça e recorrer por meio de processo junto ao Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária).
‘O Nizan [Guanaes] rasgou todos os códigos de ética em nosso negócio. Passou recibo e usou a nossa idéia. Já o Zeca, nunca vi um artista com contrato vigente fazer uma barbaridade dessas. Ele [Zeca Pagodinho] terá de se explicar para toda a classe artística’, disse Fischer.’
Salvo engano, a ética que preside a produção capitalista é o lucro. Se consideramos mercadoria tudo o que tem valor de uso e de troca, terá muito sentido cobrar das partes envolvidas posicionamentos que colidam com a lei do valor?. Numa esfera em que os homens se coisificam e as coisas se humanizam, Zeca Pagodinho, Schin e Brahma podem enfim se amar (ainda que dure uma estação), trair, e urdirem vinganças (na resposta da Schin, um homem afirma que por 3 milhões de reais faria qualquer coisa) sem qualquer problema de ordem moral.
Já vivemos o amor de Romeu e Julieta e Tristão e Isolda. Hoje, o amor possível, um dos poucos a agregar valor, parece ser o do pagodeiro pela sua cerveja. Aguardemos os próximos capítulos que nos serão servidos pelos jornais. Com precisão, riqueza de detalhes e colarinho.
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Professor universitário.