A Rádio Novelo presenteou seus ouvintes no dia 9 de novembro com uma produção jornalística sensível, histórica e, por que não dizer, essencial. A reportagem em formato podcast intitulada “O fardo que carregamos” aborda, em dois atos, “histórias sobre como levar o mundo nas costas”, nas palavras da própria produtora carioca.
Ambos os atos são dignos de aplausos, mas ficarei aqui restrito ao primeiro, que enfoca o drama vivido pelo jornalista, professor e escritor Lúcio Flávio Pinto, de 74 anos. Estamos tratando aqui de um dos maiores jornalistas ambientais do Brasil, que há quase 60 anos dedica sua vida à defesa da Amazônia. Prova disso, em 2021, a Universidade Federal do Amapá lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa em reconhecimento à sua trajetória.
Vencedor de quatro Prêmios Esso, o maior do jornalismo brasileiro, Lúcio Flávio lançou em 1987 o “Jornal Pessoal”, impresso criado para divulgar o que os outros jornais do Pará, seu Estado natal, temiam tornar público.
Bueno nos lembra que o Jornalismo Ambiental deve propor-se política, social e culturalmente engajado, porque “só desta forma conseguirá encontrar forças para resistir às investidas e pressões de governos, empresas e até de universidades e institutos de pesquisa, muitos deles patrocinados ou reféns dos grandes interesses”. Lúcio Flávio sabe disso como ninguém. Suas denúncias contra poderosos empresários do Norte do país lhe renderam dezenas de processos, ameaças de morte e agressões físicas. Mas nada disso o fez desistir da luta.
Agora, no entanto, o jornalista tem pela frente um adversário implacável: a Doença de Parkinson, diagnosticado há alguns anos. Em julho último, lamentavelmente, ele revelou em seu blog que estava largando o jornalismo diário por causa da moléstia, logo após se dar conta de um equívoco cometido em uma de suas postagens.
O texto, intitulado “Perdão, leitores”, traz a corajosa confissão: “Sob o choque da percepção, decidi encerrar a minha atividade jornalística pública diária. Não quero cometer um novo erro desse tipo, por redução ou, em algum momento, perda da capacidade cognitiva. Poderia continuar sem mudança minha atividade, apoiado no fato, comprovado cientificamente, de que não seria um erro voluntário, mas devido à doença, sobre a qual, nessas circunstâncias, não exerço controle”, reconheceu Lúcio Flávio.
Diante dessa perda irreparável para o Jornalismo, a Rádio Novelo produziu o primeiro ato de seu episódio 51, “O fardo que carregamos”, oferecendo aos ouvintes um resumo da trajetória do jornalista paraense e relatando o seu drama. A reportagem assinada por Flora Thomson-Deveaux vale cada segundo.
Dominado por grande carga emocional, Lúcio Flávio relata no podcast de pouco mais de uma hora os seus primeiros passos na profissão, fala sobre a decisão de lançar seu próprio jornal e relaciona alguns dos obstáculos que enfrentou nestes mais de 50 anos em defesa da Amazônia. E ainda expõe a sua doença e a difícil decisão que precisou tomar em nome da ética e da fidelidade aos seus leitores: deixar o jornalismo diário.
Lúcio Flávio, como um bom jornalista, encontra na elaboração de analogias uma ferramenta para racionalizar os fatos. “A Amazônia sempre foi vítima da modernização compulsória; da geração de dólar como atividade principal na Amazônia; do avanço das frentes econômicas; da segurança nacional pela povoação da região e pela transformação da floresta que abriga e esconde as pessoas em hidroelétricas, rodovias, cidades… Eu me sinto como se eu fosse um símbolo da destruição da Amazônia. Eu me sinto uma pessoa em processo de destruição”, desabafa.
Hoje lhe incomoda as limitações da doença, principalmente os lapsos de memória. Mas ele se sente como “um soldado que não pode abandonar o front”, como se estivesse traindo a sua causa, traindo a sua razão de viver, que sempre foi a Amazônia.
Lúcio Flávio, no entanto, tem buscado formas de conservar viva a chama do jornalismo que sempre lhe manteve aquecido. Nos últimos meses, ele tem republicado em seu blog antigas reportagens. É a sua forma de continuar na ativa e uma oportunidade para que tenhamos acesso aos seus trabalhos premiados. São valiosas aulas de jornalismo.
Não podemos carregar o fardo de Lúcio Flávio, mas podemos (e devemos) reverenciá-lo por sua imensa trajetória. Devemos lhe agradecer por sua devoção em prol da Amazônia, por sua coragem em enfrentar o desenvolvimentismo governamental mesmo durante a ditatura militar, por sua abnegação. E por suas mais de cinco décadas dedicadas ao Jornalismo Ambiental.
Em tempo: não deixe de ouvir também o segundo ato de “O fardo que carregamos”, de autoria da jornalista Bia Guimarães: a história de Alessandra e seu doloroso processo de cura diante de um violento trauma.
Referências
BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo Ambiental: explorando além do conceito. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 15, p. 33-44, Curitiba, Editora UFPR, 2007. Disponível aqui.Acesso em: 14 Nov. 2023.
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Sérgio Pereira é jornalista, servidor público, mestre em Comunicação pela UFRGS e integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (UFRGS/CNPq). E-mail: sergiorobepereira@gmail.com.