Poucos dias após o alívio com a decisão do STF, contrária à tese do marco temporal, os povos originários da Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ sofrem com reveses dos governos e da grande imprensa.
A pressa é inimiga da apuração jornalística, ainda mais quando há um desequilíbrio no acesso às fontes oficiais. Relacionado à cobertura do fechamento das comportas da Barragem Norte, ocorrido sábado (07/10), no município de José Boiteaux (SC), situada no Território Indígena (T.I.) Xokleng, Guarani e Kaingang (Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ), vimos, ouvimos e lemos repetições de discursos de fontes oficiais do governo de Santa Catarina, em espaço desproporcional e em detrimento de outras fontes desta pauta: as indígenas. Espalhar informações simplificadas e limitadas gera o risco de produzir desinformação e de colher comentários racistas contra os povos originários e de ódio de todos os lados.
“A diversidade de racionalidades é o maior patrimônio da espécie”, lemos neste texto do falecido geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, cujo destaque incentiva a escuta plural de todas as partes envolvidas numa pauta. Neste sentido, traremos a seguir informações relevantes a serem consideradas na produção jornalística dada a complexidade do tema, e que mesmo disponíveis, não são trazidas ao grande público.
Sobre o racismo ambiental, diferentemente do que vem sendo noticiado, o governo de Santa Catarina não teria cumprido o acordo com os povos da Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ. É o que consta na decisão judicial da manhã desta quinta-feira (12/10), a qual determina que União e Estado de Santa Catarina tem 24 horas para cumprir as “medidas mitigatórias acordadas e assentadas”, e que o estado catarinense deve “apresentar relatório técnico relativo à operação excepcional da barragem (com eventuais recomendações de novas intervenções – abertura/fechamento de comportas), considerando as previsões e ocorrências de novas precipitações na bacia coletora”. As referidas medidas constantes na decisão judicial publicada no final da noite de 07 de outubro, são sete: Desobstrução e melhoria das estradas; Equipe de atendimento de saúde em postos 24 horas; Três barcos para atendimento da comunidade; Ônibus para atendimento da comunidade até a cidade; Água potável na aldeia; Fornecimento de cestas básicas; Ficou acordado que após as comportas serem fechadas algumas casas ficarão submersas e por esse motivo deverão ser construídas novas casas para essas famílias, em local seguro e longe do nível do rio.
Sobre o racismo ambiental, a Barragem Norte é uma das três no estado utilizadas para conter cheias do Rio Itajaí-Açu, cuja capacidade de reserva de 355 milhões de metros cúbicos de água pode causar alagamentos e até inundação em uma área de aproximadamente 870 hectares do Território Indígena Laklãnõ Xokleng. É importante utilizar o conversor de Hectômetro para demonstrar o real volume de água. Estes fatos já foram registrados em cheias anteriores, daí o clamor dos indígenas (dias antes de 07/10) pelo não fechamento das duas comportas diante da grave ameaça de deixar embaixo d’água diversas aldeias do T.I. Essas e outras fundamentais informações constam no documentário de 2015 “Enchente – O outro lado da Barragem Norte”, de 37 minutos, que expõe as desumanas condições vivenciadas no território desde a construção da Barragem Norte. A internet e as redes sociais facilitam uma aproximação entre comunicadores e jornalistas indígenas, por isso é necessário buscar informações em perfis como o da Juventude Xokleng e da comunicadora Ingrid Satere Mawé.
Sobre o racismo ambiental, se o fechamento das comportas está relacionado com a manutenção da data da Oktoberfest em Blumenau (início em 11/10), este foi um debate adjacente aos impactos do evento climático extremo em Santa Catarina, mas presente nas redes sociais indígenas e de direitos humanos. O Cacique Alison Voia de Lima da Aldeia Sede da T.I. Laklãnõ Xokleng confirma (07/10/2023) o posicionamento da sua comunidade de não fechamento das comportas da barragem do território indígena. E contou o que ouviu durante a reunião com autoridades do estado de Santa Catarina: “Por causa dessas comportas que estão abertas a oktober vai ser suspendida por uma semana.”
Além do Cacique Xokleng, o prefeito de Taió, Alexandre Purnhagen, também aludiu ao megaevento, na noite de terça (10/10), o fechamento de comportas da barragem do município. Ao pedir a reabertura das comportas à autoridade estadual da Defesa Civil, o prefeito afirmou: “Eu vou culpar a Oktoberfest. Taió também faz parte deste estado. Eu não estou preocupado com bilheteria de Oktober, eu estou preocupado com vida de taioense. Vocês precisam abrir estas comportas. Blumenau não precisa ter todas as ruas na condição de seco.”
Diferentemente da reivindicação indígena, o pedido do prefeito de Taió teria sido atendido horas depois, considerando a notícia do governo estadual sobre a abertura gradativa das comportas das barragens (Sul, em Ituporanga, e Oeste, em Taió), exceto da Barragem Norte, a que atinge o território indígena. Mas, a notícia do início da tarde desta quinta-feira (12/10) apresenta a situação das três barragens como fechadas.
O megaevento turístico iniciou em Blumenau, na véspera deste feriado de Dia das Crianças, apesar do alerta vigente da Defesa Civil de alto risco de “temporais localizados em todo o estado com possibilidade de chuvas fortes, descargas elétricas, ventos intensos e queda de granizo. Alagamentos, deslizamentos, enxurradas e inundações graduais, o risco permanece muito alto”. Mas, foi suspenso novamente, na manhã do feriado, devido aos riscos de alagamentos no município. O retorno da programação ficou para o final da tarde desta sexta-feira (13/10).
Sobre o racismo ambiental, o relato da indigenista Georgia Fontoura sobre a reunião realizada na tarde de sábado (07/10), na T.I. Laklãnõ Xokleng, aponta o descumprimento, pelo governo catarinense, do acordo feito através do secretário de infraestrutura do estado com as demais autoridades, “de enviar mantimentos, barco, remédios e atender as famílias isoladas e atingidas pela cheia do lago de contenção”, considerando a desativação desde 2014 e não execução do plano de contingência. Três dias depois, Georgia publicou informações mais completas no artigo “As chuvas e os bugreiros” com outros indigenistas na Revista Fórum. E, sobre a mesa de negociação de domingo (08/10), o deputado Marquito (Psol) relata o pedido ao governador de Santa Catarina para que mantivesse o acordo firmado com os indígenas através do secretário. “A motivação do governador de ter colocado as forças de segurança e ter fechado as comportas sem uma análise técnica e política foi um grande erro”, afirmou.
Enquanto isso, a preferência na cobertura de pautas que ligam indígenas à violência, como aponta o Minimanual Como cobrir temas indígenas, confirmou-se na cobertura do chamado “confronto” entre indígenas e polícia militar na noite de 07 de outubro para o fechamento das duas comportas. É urgente problematizar:
1 – “as consequências que poderá provocar na vida e no território desta população, cuja sobrevivência também passou a estar em risco. Questiona-se ainda o uso excessivo da força que resultou em indígenas feridos”, conforme Nota da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC);
2 – as declarações da Defesa Civil estadual referente aos impactos negativos causados pela barragem no T.I. Laklãnõ Xokleng na palestra “de instrução e sensibilização sobre a presença indígena em Santa Catarina e Blumenau para policiais militares do 10º Batalhão da PM”;
3 – a condenação em 2017, segundo indigenistas, do estado de Santa Catarina, da União e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em “implementar ações compensatórias e de segurança relativas à Barragem Norte”, o que não teria sido cumprido;
4 – a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de rejeitar a tese do marco temporal em processos demarcatórios, que é favorável ao povo da Terra Indígena Ibirama – Laklãnõ, após um dos maiores julgamentos da história do STF, foram onze sessões. O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 está relacionado a um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC). A tese da repercussão geral (Tema 1.031), a partir deste julgamento, será utilizada na resolução de ao menos 226 casos semelhantes.
No decorrer da semana, notícias continuaram insistindo na culpabilização do povo indígena. Referente à veiculação de informações sobre a suposta negativa de abertura das comportas, o cacique Setembrino Camlen esclareceu que esta decisão é da defesa civil e do governo do estado. “Não é que a comunidade não está deixando operar a barragem, a comunidade não vai impedir que a equipe faça o trabalho que quer fazer. Estamos aqui num momento difícil, a comunidade está se deslocando das aldeias, estão ilhados, tem casa deslizando, então o pessoal está vindo com medo e por isso estão acampando.” Há mesmo muito a ser ouvido. O jornalismo possui as condições, mas a grande imprensa brasileira conseguirá mudar o padrão de cobertura?
Reportagem originalmente publicada em Observatório Jornalismo Ambiental
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Eliege Fante é jornalista, doutora em Comunicação e Informação, membra do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental UFRGS/CNPq e assessora de comunicação da Rede Campos Sulinos.