Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Remoções olímpicas

Na semana passada, a Agência Pública lançou a reportagem especial 100 (www.apublica.org/100), que trata de uma questão já bastante esquecida no momento em que começam a rufar os tambores da Olimpíada 2016: as milhares de famílias que foram removidas no Rio de Janeiro para dar espaço à infraestrutura dos Jogos.

Publica 100

Homepage da repórtagem multimídia Pública100

Segundo estimativa da Prefeitura, houve 22.059 famílias reassentadas desde o começo da gestão de Eduardo Paes (PMDB), em 2009. Dessas, 72,2% teriam sido removidas por viverem em moradias precárias, sob risco de desabamentos, alagamentos, ou por estarem morando em condições insalubres.

O dado é bastante controverso, principalmente pelo fato de que a prefeitura do Rio recusa-se a detalhá-los. Não se sabe por exemplo quais as comunidades afetadas e quantas pessoas foram removidas de cada uma delas. Durante a apuração de 100, a Pública fez dois pedidos pela Lei de Acesso para saber quantas pessoas foram removidas de 12 comunidades que comprovadamente estavam no caminho de três legados olímpicos – o BRT Transolímpica, o BRT Transoeste e o Porto Maravilha –, além da reforma do Maracanã. Seguimos as regras impostas pela prefeitura. Um dos pedidos feito pessoalmente na cidade Nova, em papel; o outro, pelo portal 1746, que recebe reclamações sobre buracos de rua, hospitais e outros serviços, já que a administração municipal não tem um canal específico para receber pedidos de acesso à informação, como dita a lei. Ambas as demandas foram ignoradas.

Quando não há bases de dados, o jeito é criar uma base própria. E é disso que se trata o especial. Resolvemos produzir o mais extenso levantamento já feito com as famílias removidas pela Olimpíada e expor tudo em uma base de dados viva. Era fundamental que esses depoimentos fossem em primeira pessoa, gravados ou filmados, para que se tornassem fonte primária de informações e falassem por si. Por isso, a reportagem não seguiu um roteiro pré-definido: decidimos ir à rua e ouvir o que cem famílias que foram vítimas têm a dizer. Em especial, queríamos saber o que aconteceu com elas depois das remoções. A partir dessa escuta, chegaríamos certamente a conclusões novas.

Casa Pública

Era uma tarefa gigantesca, e mais ainda por se tratar do primeiro “LAB”, um laboratório de exploração de novas narrativas jornalísticas que funciona desde março na Casa Pública, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Além de ser um centro Cultural voltado apenas para a produção jornalística, a Casa Pública é também um espaço de experimentação e criação de novas possibilidades que aliem jornalismo, arte e tecnologia. Para nosso primeiro laboratório, “importamos” da Colômbia editora criativa Olga Lucía Lozano, vencedora do prestigioso prêmio Gabriel Garcia Marquez de inovação. Ela trouxe do seu país a designer e animadora Lorena Parra, que também participou do processo criativo intensivo da Laboratório. As duas participaram de uma residência na Casa Pública, onde conviveram diariamente com outros membros do projeto, como eu mesma, as repórteres Jessica Mota e Giulia Afiune (que vieram de São Paulo e Boston para o Rio para participar deste projeto), o designer iraniano Babak Fakhamzadeh, a tradutora Beth McLoughlin. Foram no total 5 países, três línguas e muitas experiências diferentes que se encontraram na Casa entre abril e julho deste ano para dar luz ao projeto 100.

Como coordenadora do projeto, houve vezes em que parecia que eu estava lidando com uma verdadeira Torre de Babel. Mas a proximidade proporcionada pela residência jornalística permitiu que todas as diferenças trabalhassem para um fim comum: produzir algo absolutamente novo sobre um assunto que já fora bastante abordado no passado.

Olga nos ajudou a pensar desde o começo que tipo de perguntas deveríamos fazer às famílias para que suas histórias fossem contadas de maneira sedutora, completa, mas também par que juntas contassem uma história – fragmentada, mas contundente, como as suas casas partidas. Juntas, elaboramos um questionário-base que orientaria os repórteres em todas as entrevistas. Além disso, ela fez a “conceitualização” visual do projeto.

A ideia central era a de paredes que cedem para que se apague uma história; para dar lugar a muros reluzentes que impedem a lembrança do que era o Rio pré-megaeventos; para enterrar as histórias de quem construiu e habitou esses espaços antes das remoções. Foi a partir dessa ideia que fizemos a conceitualização gráfica e a estrutura que, ao final, perpassam o projeto jornalístico na sua totalidade”, explica Olga Lucía.

Assim, a apuração em campo funcionou totalmente atrelada à concepção visual e ao projeto interativo final.

As entrevistas foram todas realizadas pessoalmente, o que significa muitas horas a mais por conta do trânsito caótico do Rio de Janeiro. Grande parte dos removidos – cerca de 73% segundo a prefeitura – está em apartamentos do programa Mina Casa, Minha Vida nas zonas norte e oeste do Rio. Para chegar lá em trasporte público (que é o meio geralmente utilizado pelos nossos repórteres), são pelo menos duas horas de viagem.

Uma parceria inédita com a universidade ESPM do Rio, coordenada pela professora Monica Mourão e o coordenador de Jornalismo, Pedro Curi, veio nos ajudar em boa hora. Tivemos a ajuda de 19 alunos que encararam as longas viagens, lama nos sapatos, visitas a locais insalubres, muitos “nãos” e muitas lágrimas durante a apuração.

Como havíamos previsto, ouvir todas essas histórias nos ensinou algumas coisas novas sobre o processo de deslocamento populacional que aconteceu na cidade nos últimos anos. As expulsões olímpicas deixaram um legado difícil de esconder: violências psicológicas e físicas, relações sociais dilaceradas, moradores endividados e sujeitos ao controle das milícias da zona oeste do Rio.

O especial

Após o processo de apuração e edição, organizamos os depoimentos em um formato que possa ser navegável de acordo com a curiosidade do leitor. Assim, cada casinha colorida disposta na “home” pode ser clicada, e o leitor chegará à página de cada entrevistado. Nela, além do depoimento, incluímos uma “mapa pessoal” que reflete a migração forçada dentro do próprio município.

Um toque especial foi dado nos casos em que não conseguimos gravar as entrevistas em vídeo: juntamos fotos em um “slideshow” ao som do depoimento, trazendo uma linguagem muito usada no Youtube por produtores anônimos que juntam fotos bonitas a músicas populares.

Falando em música, ela também foi um elemento importante para reconstruir o sentimento da “saudade” da antiga casa. Muitos moradores nos contaram quais as músicas que os lembram do antigo lar. O resultado foi elencado em um Podcast que pode ser ouvido e compartilhado pelos leitores. É a trilha da saudade…

Ao ser concebido como um reportagem transmídia, além dos conteúdos online, o especial 100 incluiu também componentes produzidos para circular em outros formatos e em espaços offline, com o propósito de chegar a públicos diversos, e também de gerar uma narrativa capaz de abordar diversas perspectivas. Assim nasceram “Cem”, “Antes e Depois” e “Homenagem às Paredes Caídas”, três obras artísticas que traduzem a investigação jornalística para linguagens mais próximas às artes visuais. Elas estão expostas na Casa Pública, na Rua Dona Mariana, 81, Botafogo, Rio de Janeiro.

Outro componente “lúdico” do especial é a seção “Piche a Parede. Trata-se de um muro virtual, programado para receber “pichações” dos leitores. Basta o visitante escrever qualquer frase em um formulário no site, e a frase aparece como “pixo” na página de 100. Até agora, os leitores “pintaram” citações de Lúcio Costa, Aldir Blanc e fotos de pichações, essas reais, pelas ruas do Rio.

Além de divertido, é uma maneira de reproduzir no mundo online o que foi uma das principais armas de denúncia das comunidades que tentaram se organizar contra as expulsões forçadas. Qualquer um que tenha ido até o Parque Olímpico em construção pôde ver as dezenas de frases pintadas nos muros, em protesto contra as demolições das casas da comunidade Vila Autódromo.

Finalmente, a equipe criativa de 100 fez com que o projeto fosse interativo na sua essência e concepção. É por isso que ele foi lançado não com 100 entrevistas já feitas, mas apenas com 62.

É uma verdadeira maratona jornalística, que só será concluída se o público quiser participar, enviando mais histórias pelo site ou pelo nosso Whatsapp: 11 97173 2008

Por isso, lançamos um chamado a moradores removidos, jornalistas, midialivristas, estudantes de jornalismo, ativistas, pesquisadores que queiram contribuir com essa maratona, nos ajudando a completar nosso pódio de expulsões e violações de direitos humanos.

Lançamos o projeto na última semana com 62 histórias, e já temos 65. Que tal nos ajudar a chegar a 100?

***

Natalia Viana é  fundadora e co-diretora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo